Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

3 MIN DE LEITURA | Revista 52

Mãos

 

Parte I {Parte II}

 

Love your hands! Love them. Raise them up and kiss them.

Touch others with them, pat them together,

stroke them on your face…                         Morrison (2004)

 

São 8.32. O comboio chega à hora certa.

Espero sempre perto das últimas carruagens, porque acredito que a maioria das pessoas ficará mais à frente e que, assim, talvez consiga um lugar sentado, como se gozasse de uma sabedoria secreta, uma astúcia antiga sobre a lógica da espera e das entradas e saídas no comboio. Claro que muitas pessoas pensam exatamente como eu e são raros os dias em que consigo fazer a viagem sentada.

Desde há uns anos, já muitos mais do que me parece, quando entro para um lugar onde estão muitas pessoas, é raro ver os olhos das pessoas. Mais raro ainda, que algum olhar se cruze com o meu. Quando entram para o comboio, ou para metro, a maioria das pessoas avalia rapidamente a existência de lugares disponíveis. Um desvio ágil da rota do ecrã que seguram nas mãos para o mundo que existe fora do ecrã. Regressam logo a seguir. Ao ecrã. Quando há lugares, sentam-se num movimento que já pouco reconhece a existência da outra pessoa ali sentada. Ficam de lado, movimentando a mochila que transporta o ecrã maior. Empurram os ombros das pessoas por quem passam. Empurram a pessoa que já estava ali sentada, a mochila bate na orelha, puxa e arranca inadvertidamente alguns cabelos. Intrigante que nesse casulo o próprio, ou a própria, deixem de sentir a pressão que é exercida de volta. Seria natural que o corpo sentisse a resistência. O limite do espaço. Mas não sente. No seu casulo, é como se o corpo tivesse perdido a curiosidade, como se a sensibilidade mais primária, a da pele, do toque, a primeira evidência depois de nascermos de que não estamos afinal sozinhos neste mundo, se tivesse perdido para uma dormência de onde não se desperta facilmente. Nem com o beijo do amor. A fonética do grito virado ao contrário em direcção a si mesmo. Na colisão frontal e inadiável, causa sempre o silêncio. Um silêncio desprovido de comunicação.

Ao mesmo tempo, tenho também observado que por entre este corpo dormente numa espécie de anedonia, que é um sintoma necessário para o diagnóstico da Perturbação Depressiva Major(Treadway & Zald, 2011), emergem desautorizadas as mãos. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V-TR; American Psychiatric Association, 2000), a anedonia consiste na diminuição do interesse ou prazer, em resposta a estímulos que antes eram percebidos como recompensadores.

Ou seja, adaptando ao contexto, qualquer coisa como dizer bom dia a um estranho, perguntar se o lugar está livre, se poderia sentar-se, olhar pela janela e perceber pela cor do céu e pelas nuvens dispersas que hoje o dia se promete quente. No contexto de um lugar onde existem tantas pessoas estranhas e que em tempos se poderia ter pensado ser um lugar  potencialmente social, mas que agora deixou de ser. Observo o desinteresse. Ausência total de um prazer que possa chegar por via do outro anónimo. Ausência de perceção do outro. Como refere Han em vários dos seus trabalhos, a pessoa como que habita numa caixa de ressonância especial, uma câmara de onde só provém o eco de si próprio e de onde se extinguiu, absolutamente, toda a alteridade (o outro) e estranheza, ou seja, o que é (ou pode ser) diferente de si mesmo (e.g., Han, 2018; 2020).

Neste processo de zombificação, contudo, observo que por entre este corpo que se virtualiza, anestesiado e indiferente ao que não é imediatamente seu, aparecem às vezes essas mãos.

Mãos que não se aquietam. Como válvulas da panela de pressão. Caudas de gato ou de serpente na antecedência do ataque certeiro.

As mãos, que sempre contaram as histórias não ditas das pessoas.

Da pele que sabe da idade, às unhas que sabem das superfícies e dos materiais.

O movimento das mãos.

A consciência do movimento das mãos.

Amplitude.

Alongamento.

Mãos que conversam sem autorização.

Que chamam.

Que empurram.

Que batem.

Que fazem música.

Dos estalidos ao dedilhar.

Mãos que pintam.

Esculpem.

Testam a resistência dos materiais e os materiais.

Mãos que aquecem. Ou que tremem de frio, esfregando-se uma na outra à procura da circulação. O sangue quente.

Mãos-mapa. Que apontam. Que tiram apontamentos.

Mãos que tecem.

Que alimentam.

Mãos que seguram. Suportam. Que não largam.

Nunca.

Mãos hesitantes. Mãos de medo.

Mãos comidas. Das unhas às peles à volta das unhas.

Mãos que coçam.

Que refrescam.

Mãos que sacodem o pó dos livros.

Mãos que sacodem pessoas.

Ouviste?

Mãos que abrem o abraço. Que definem a distância.

Mãos com dedos que se cruzam para fazer os desejos acontecerem.

Mãos que revelam destinos para quem as sabem ler.

Mãos que coreografam mensagens de amor ou de horror ou de insulto ou de raiva.

Fechadas de raiva, as unhas a espetarem-se nas palmas das mãos.

Mãos que masturbam.

Mãos mortas. Adormecidas, ou mesmo mortas.

Mãos que mutilam.

Enrugadas dos mergulhos, ou da velhice.

Mãos com extremidades de gel, impedidas de apanhar objetos pequenos. Como os pavões. De voar.

Mão na boca, para trancar palavras, o sorriso, o medo.

Observei, escrevia, as mãos inquietas. No corpo inerte, absorto, alheado do conteúdo interior, as mãos incapazes de se distraírem, também.

Repetem incessantemente um meticuloso percurso de movimentos. Ritualizam.

Referências bibliográficas

  • American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (Revised 5th ed.). American Psychiatric Publishing.
  • Cooperrider, K. (2020, July). If language began in the hands, why did it ever leave?  Aeon. https://aeon.co/essays/if-language-began-in-the-hands-why-did-it-ever-leave
  • Dunbar, R. (1996). Grooming, gossip, and the evolution of language. Harvard University Press. 
  • Fay, N., Walker, B., Ellison, T. M., Blundell, Z., De Kleine, N., Garde, M., Lister, C. J., & Goldin-Meadow, S. (2022). Gesture is the primary modality for language creation. Proc. R. Soc. B. 28920220066. http://doi.org/10.1098/rspb.2022.0066
  • Feldman, J., & Narayanan, S. (2004). Embodied meaning in a neural theory of language. Brain and Language, 89, 385-392. http://doi.org/doi:10.1016/S0093-934X(03)00355-9
  • Han, B. C. (2018). A expulsão do outro – Sociedade, Perceção e comunicação hoje. Relógio de Água.
  • Han, B. C. (2020). Morte e alteridade. Vozes.
  • Malone, A. J., & Massler, M. (1952). Index of nailbiting in children. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 47, 193-202. https://doi.org/10.1037/h0060287
  • Morrison, T. (2004). Beloved. Vintage.
  • Pelc, A. W., & Jaworek, A. K. (2003). Onychofagia jako problem interdyscyplinarny [Interdisciplinary approach to onychophagia]. Przeglad lekarski, 60, 737-739.
  • Treadway, M. T. & Zald, D. H. (2011). Reconsidering anhedonia in depression: Lessons from translational neuroscience. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 35, 537-555. https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2010.06.006.
  • Zhong, C. B., & Liljenquist, K. (2006). Washing away your sins: Threatened morality and physical cleansing. Science, 313, 1451-1452. http://doi.org/10.1126/science.1130726

 

Para citar este artigo:

PECEGUINA, Inês. Mãos – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-52/maos , número 52, 2024

O limite do espaço. Mas não sente. No seu casulo, é como se o corpo tivesse perdido a curiosidade, como se a sensibilidade mais primária, a da pele, do toque, a primeira evidência depois de nascermos de que não estamos afinal sozinhos neste mundo, se tivesse perdido para uma dormência de onde não se desperta facilmente.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.