Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

4  MIN DE LEITURA | Revista 50

Para o infinito e mais além: sobre as narrativas e o esquecimento.

 

Parte I {Parte II}

A criança, ainda um bebé, pouco mais de um ano, está sentada em frente à mãe. Comunicam. Quer dizer “pôr em comum”. A bebé aponta, a mãe olha na direção do dedo pequenino. O olhar regressa. A mãe toca num pé, ela estica um pouco mais. Estão no mesmo batimento, a mesma frequência, em sincronia. Na literatura sobre este processo, chama-se join attention, atenção conjunta. Depois a mãe vira-se para trás e, quando regressa, a sua expressão está neutra. A bebé percebe a mudança imediata. A ausência de comunicação. As sobrancelhas juntam-se. Intriga-se. Apressa-se a usar tudo o que sabe para retomar a sincronia. Todas as tentativas falham. Avoluma-se o desconforto, cresce uma angústia de impossibilidade. Uma solidão. Abismo. Não existimos sem eco. Sem espelhos. E apesar de ser evidente, conhecimento implícito, daquele que dispensa muita elaboração, às vezes parece que acontecem coisas estranhas nisto de evoluir. Como se ao ligarmos algumas luzes, apagássemos completamente outras. E mergulhássemos num estado de iliteracia básica.
No final da década de 1970, início de 1980, Edward Tronick e os seus colegas publicaram um conjunto de estudos sobre a interação entre os bebés e os seus cuidadores (Cohn & Tronick, 1983; Tronick  & Cohn, 1989). As experiências consistiam, mais ou menos, no relato acima. Um cuidador e um bebé interagem. A certa altura o experimentador sinaliza que o cuidador deve virar-se e voltar a olhar para o bebé com uma expressão neutra, que deve manter apesar de todos os esforços do bebé para repor a comunicação. Na altura em que estes resultados foram publicados, refere-se, assumia-se que os bebés não interagiam de facto com os seus cuidadores e que as interações precoces não eram essenciais para o seu desenvolvimento, como agora se reconhece.

Ao ler esta observação, avoluma-se no meu corpo e desconforto. Fico intrigada. Espantada mesmo. Uma coisa é saber que se sabe. Outra é saber e pronto. É difícil compreender que este conhecimento seja uma descoberta recente. Não é. De certeza que desde muito cedo, desde que somos dependentes da sincronia com o outro, que é a raiz da ligação na nossa e em muitas outras espécies, que essa sabedoria existe. Quando é que se esqueceu? Como? Ou nunca se esqueceu, e foi operando na lógica da intuição, da presença, do estar absolutamente, ouvi absolutamente, mas de alguma forma, à medida que nos decidimos a provar, a demonstrar, a testar e precisar de evidência passíveis de medida, caímos numa espécie de cegueira.

Como se o que existe, e o que pudesse existir, não tivesse outra forma de existência se na sua base não estiver a (ilusão) de um controlo absoluto sobre as variáveis que, devidamente aleatorizadas pelos participantes dos estudos, têm de produzir resultados objetivos, validados, e replicados um pouco por toda a parte. Como se olha só já não chegasse. Como se a experiência subjectiva, fenomenológica, fosse uma alergia, um erro de processamento que só passa a não-erro, se puder ser atestada objectivamente. Que pena. Que desperdício de saberes. Que desperdício de sabedoria de uma história que é, afinal, a nossa própria história. 
Apesar da urticária generalizada sobre a investigação que se assume por princípio fenomenológica e que, por causa disso, não tem o poder de replicabilidade ou generalização como acontece quando se utiliza outra base teórica e empírica, ainda sobrevivem alguns outiers, ou outsiders, ou queers, talvez, que se aventuram em querer explorar floresta adentro, e que querem saber das experiências singulares, irrepetíveis, sem valor de abrangência, mas plenas se significado, de simbólico, de relevância singular. O que é ao mesmo tempo interessante, é que destes relatos, as histórias individuais, as narrativas, surge muitas vezes confluência. O que é natural. Se conseguirmos perceber que, apesar da singularidade, são transversais os grandes temas, os grandes conflitos. Pertencer ao mesmo tempo que se preserva um “eu”. Ser cuidado, protegido. Cuidar e proteger. Conquistar. Ultrapassar tudo o que não estava nos planos, e que é quase tudo. Perdermo-nos. Perder o outro. 
 Ainda hoje, a investigação sobre as narrativas, as histórias, parece centrar-se sobretudo na linguagem (e.g., Turner, 1996), o que pressupõe uma concepção de que as narrativas são uma espécie de forma de arte, sofisticada, em vez de servirem uma função comunicativa mais primária (e servem). Alguns autores consideram que o ser humano é, por natureza, um ser narrativo, sugerindo o conceito de Homo narratus (Richardson, 2014). Assim, em vez de serem consideradas apenas produto da escrita ou do relato criativo, as narrativas são também (e sobretudo) parte do dia a dia. São conteúdo recorrente da comunicação com os outros e com o mundo. Para além disso, as narrativas também existem nas histórias que contamos a nós mesmos, constituindo-se como comunicação interna.
Simultaneamente, a evolução da comunicação em termos de linguagem narrativa – contar histórias (storytelling) parece ser também um elemento fundamental na evolução humana, influenciando a cognição, as dinâmicas sociais e culturais, manifestando-se como uma forma eficaz de ligação social (social grooming), que favorece a coesão do grupo, e que era antes assegurada pelo contacto físico de um para um (Dunbar, 2017). 

Nesta perspectiva, que parte de uma matriz evolutiva e que, ao mesmo tempo, abre espaço para processos individuais e de complexidade maior, nomeadamente de natureza artística, prevalece a ideia de que a narrativa, as estórias, são o que confere sentido e significado às experiências, favorecendo a integração e a adaptação às diversas circunstâncias de vida de uma pessoa. No limite, as narrativas são uma espécie de mecanismo de criação de sentido, permitindo, não apenas dar sentido ou significado à experiência, mas também a sua própria construção e ressignificação (Gabriel, 2004). Ou seja, contêm uma qualidade de permeabilidade e de dinâmica. 

As narrativas da história humana e nas histórias humanas, ou da filogenia à ontogenia das narrativas de forma muito simplista, a filogenia refere-se à história evolutiva de uma espécie, enquanto a ontogenia diz respeito ao desenvolvimento individual de cada organismo dentro dessa espécie (Fink, 1982). Estes conceitos têm sido sobretudo utilizados no âmbito da biologia evolutiva, por exemplo, para explicar o desenvolvimento embrionário (Nelson, 1978), mas podem também ser boas metáforas para outros processos de desenvolvimento.
Observemos o caso do brincar. A brincadeira ou jogo do “faz-de-conta” (fantasy play), tem sido observado universalmente durante a infância, embora as suas formas e frequência variem em função do contexto ou ecologia específicos (e.g., Bock 1999; Lancy 1996). Assim, podemos considerar que este tipo de brincadeira, que se manifesta e progride no desenvolvimento humano, mais ou menos dentro dos mesmos tempos, e seguindo estruturas de complexidade crescente semelhantes, é um indicador de que este comportamento ou habilidade tem uma base filogenética, evolutiva. Neste caso, que remonta também aos nossos antepassados, primatas não humanos (Pellegrini, & Smith, 2005). Em simultâneo, individualmente, cada criança, imersa na sua ecologia específica, desenvolverá conteúdos ou narrativas deste tipo de brincar que são só suas, ou que se aproximam mais das de crianças em contextos semelhantes, ou seja, cada criança desenvolve o seu repertório individual, ontogénico, relativamente à brincadeira faz-de-conta. O mesmo poderia ser aplicado à atenção conjunta e à comunicação precoce entre os bebés e os seus cuidadores principais.

Referências bibliográficas
Bakhtin, M. M. (2010). The dialogic imagination: Four essays. University of Texas Press.
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Bock, J. (1999). The socioecology of childrens activities: A new model for work and play. Biennial meeting of the Society for Research in Child Development.
Brockmeier, J., & Carbaugh, D. A. (2001). Narrative and identity: Studies in autobiography, self and culture (Vol. 1). John Benjamins Publishing.
Cohn, J. F., & Tronick, E. Z. (1983). Three-month-old infants’ reaction to simulated maternal depression. Child Development, 185-193.
Consoli, S. (2021). Uncovering the hidden face of narrative analysis: A reflexive perspective through MAXQDA. System, 102, https://doi.org/10.1016/j.system.2021.102611
Dunbar, R. I. M. (2017). Group size, vocal grooming and the origins of language. Psychon Bull Rev, 24, 209–212. https://doi.org/10.3758/s13423-016-1122-6
Figgou, L. & Pavlopoulos, V. (2015). Social Psychology: Research Methods. In J. D. Wright (Ed.-in Chief), International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences (2nd ed., pp.544-552). Oxford, UK: Elsevier. http://doi.org/10.1016/B978-0-08-097086-8.24028-2
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Good, B. J., & Del Vecchio Good, M. J. (1994). In the subjunctive mode: epilepsy narratives in Turkey. Social science & Medicine, 38, 835-842. https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90155-4
Greenhalgh, T. (1999). Narrative based medicine in an evidence based world. BMJ, 318, 323-325. https://doi.org/10.1136/bmj.318.7179.323
Lancy, D. F. (1996). Playing on the mother-ground. Guilford.
Napier, A. D., Ancarno, C., Butler, B., Calabrese, J., Chater, A., Chatterjee, H. et al. (2014). Culture and health. Lancet, 384, 1607-39. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)61603-2
Nelson, G. (1978). Ontogeny, phylogeny, paleontology, and the biogenetic law. Systematic Zoology, 27, 324-345. https://doi.org/10.2307/2412883
Pellegrini, A. D., & Smith, P. K. (2005). The nature of play: Great apes and humans. Guilford Press.
Richardson, R. B. (2014). Narrative madness: The Quixotic quest for reality. Omar
Scholtz, S. E., de Klerk, W., & de Beer, L. T. (2020). The use of research methods in psychological research: A systematised review. Frontiers in Research Metrics and Analytics, 5: 1. https://doi.org/10.3389/frma.2020.00001
Tronick, E. Z., & Cohn, J. F. (1989). Infant-mother face-to-face interaction: Age and gender differences in coordination and the occurrence of miscoordination. Child Development, 85-92.
Turner, M. (1996). The literary mind: The origins of thought and language. University Press.

Para citar este artigo:

:PECEGUINA, Inês. Para o Infinito e Mais Além Sobre as Narrativas e o Esquecimento. – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50para-o-infinito-e-mais-alem-sobre-as-narrativas-e-o-esquecimento/, número 50, 2024

As narrativas da história humana e nas histórias humanas, ou da filogenia à ontogenia das narrativas de forma muito simplista, a filogenia refere-se à história evolutiva de uma espécie, enquanto a ontogenia diz respeito ao desenvolvimento individual de cada organismo dentro dessa espécie (Fink, 1982). Estes conceitos têm sido sobretudo utilizados no âmbito da biologia evolutiva, por exemplo, para explicar o desenvolvimento embrionário (Nelson, 1978), mas podem também ser boas metáforas para outros processos de desenvolvimento.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.