Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

4  MIN DE LEITURA | Revista 51

Para o infinito e mais além: sobre as narrativas e o esquecimento.

 

{Parte I} Parte II

E as histórias? As narrativas? Importando estes conceitos, talvez seja interessante pensar numa filogenia da narrativa – toda a história humana que contém os desafios transversais, por exemplo, sobre o desenvolvimento dos vínculos afetivos com os cuidadores, mas também uma ontogenia da narrativa, que é a história de cada um, distinta e única, não obstante a universalidade de muitos dos temas principais, novamente, por exemplo, a história da relação entre uma determinada criança e os seus cuidadores, considerando todas as especificidades do contexto e dos elementos que fazem parte desse contexto.

As culturas humanas são fundamentalmente narrativas, na sua essência, criando condições não apenas para que cada criança seja capaz de se tornar num narrador, um contador de histórias, do ponto de vista da competência comunicativa, mas propiciando, também, o desenvolvimento do seu eu autobiográfico (Brockmeier & Carbaugh, 2001).

As narrativas na investigação em psicologia e nos contextos de saúde

Embora a utilização das narrativas em investigação tenha ganho alguma notoriedade nas últimas décadas (Bell, 2002; Consoli, 2021), em comparação com outros métodos de investigação, continua a ser um território pouco explorado e, por essa razão, talvez, ainda pouco valorizado quando se trata de avaliar o impacto de uma determinada variável ou conjunto de variáveis em estudo. Por exemplo, numa revisão sistemática sobre os métodos de investigação utilizados na investigação em psicologia (Scholtz et al., 2020), da qual resultou a seleção de cinco revistas científicas, num total de 999 artigos, publicados entre 2013 e 2017, os resultados mostram que os investigadores tendem a utilizar sobretudo métodos de investigação quantitativos (90.2%), em comparação com todos os outros métodos de investigação. Os desenhos ou métodos qualitativos, representam apenas 4.8% dos métodos utilizados e, dentro destes, apenas 0.28% recorrem à narrativa enquanto desenho de investigação. É por isso, diria, que depois nos esquecemos do que já sabíamos, mas que sabíamos através de outras fontes e linguagens. 

No contexto de saúde, de acordo com um relatório publicado pela World Health Organization (Greenhalgh, 2016), embora a história do paciente seja desde há muito tempo considerada um elemento central na medicina clínica, a utilização da investigação narrativa, como forma de compreender os contextos sociais e culturais de saúde é mais recente. Foi apenas em 2014 (sim, há 10 anos!), que a Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas revistas de medicina do mundo, publicou um relatório, intitulado Cultura e Saúde (Napier et al., 2014), que estabeleceu um ponto de referência, clarificando o conceito de cultura e reconhecendo que embora muitos dos progressos na medicina sejam o resultado da investigação fundamental e epidemiológica, a falta de atenção sistemática sobre a(s) cultura(s) consiste numa deficiência significativa. A partir desta constatação, o relatório apresenta um conjunto de recomendações, que são pertinentes não apenas no contexto da medicina, ou das ciências da saúde, mas também no contexto de outras áreas, nomeadamente as ciências humanas, que são também, muitas vezes, um lugar indispensável de saúde.

No geral, considera-se que a medicina deve integrar as construções culturais (significados) de bem-estar, e que a cultura deve ser incorporada na saúde e nos cuidados de saúde e, ainda, que o papel da pessoa-paciente enquanto agente, ou seja, que tem intenção e que age com uma certa intenção, deve ser melhor entendido, considerando a cultura de cada pessoa. (Incrível…).

Quanto ao foco sobre a investigação narrativa, os primeiros registos centravam-se maioritariamente sobre a estrutura, ou seja, as seções que constituem a trama, a sua evolução, clímax e resolução (Figgou & Pavlopoulos, 2015). Nas décadas mais recentes, contudo, os investigadores têm dedicado maior atenção ao ato da narrativa em si (Bakhtin, 2010). Desta forma, exploram-se as circunstâncias da narrativa e a sua mudança através da interação com o narrador/escritor e o ouvinte/leitor. Compreender por que motivo uma pessoa contou uma determinada história em particular (ou não contou uma outra história, em vez dessa), pode ser uma forma de aceder a elementos importantes sobre aspectos que dificilmente se conseguem medir com instrumentos quantitativos.   

Segundo Greenhalgh (1999), embora as narrativas, enquanto dados anedóticos, ocupem o último lugar da hierarquia naquilo que se considera a medicina baseada em evidências, a investigação narrativa não deve ser equiparada a anedota, mais do que os dados quantitativos devem ser equiparados à verdade. Se por um lado os estudos epidemiológicos e os estudos experimentais são bons preditores da frequência de alguns eventos nas populações e da probabilidade de determinados resultados, a investigação narrativa permite conhecer o significado ou sentido das experiências.

Através das narrativas, ao contrário da informação que se obtém a partir dos desenhos quantitativos, é possível capturar o conhecimento tácito. Muitas vezes, nas organizações e instituições, incluindo a família, as narrativas são a ponte entre o conhecimento explícito, codificado e formal e o conhecimento informal, não codificado (e.g., o estilo de comunicação, interações e relações entre os elementos. A análise das histórias individuais, agrupadas em meta-narrativas, permite abrir uma outra janela para conhecer e estudar as organizações, as comunidades e as culturas. Adicionalmente, ao contrário dos dados quantitativos, as histórias são abertas, criando a possibilidade de mudança, ao permitirem imaginar outros desfechos, outros começos, e refletir sobre o que poderia ter sido, o que deveria ter sido, o que pode vir a ser (Good & Del Vecchio Good, 1994).

Por fim, as histórias podem ser subversivas, envolvendo uma tensão entre o canónico e o imprevisto (Bruner, 1987), um mapa de papéis possíveis, de mundos possíveis, definindo o pensamento, a ação, a definição do eu.

Em síntese, a investigação narrativa apresenta-se como um desenho de investigação apropriado para responder a questões que se preocupam com o significado, a percepção individual e/ou coletiva de uma determinada experiência, considerando as diferentes vozes ou perspectivas, as diferentes versões sobre um evento quando o propósito é o de conhecer mais aprofundadamente um determinado fenómeno. Ao contrário da investigação quantitativa, o rigor deste tipo de metodologia depende menos de procedimentos técnicos (e.g., garantir que as observações independentes de dois observadores são altamente concordantes) do que da produção de uma interpretação convincente das narrativas.

Sempre que na minha floresta encontro estas “descobertas” sobre as coisas essenciais e uma parte de mim tem a sensação de estranheza, as sobrancelhas a encolher-se em direção ao nariz, fico sempre com muitas dúvidas sobre o mundo. Dúvidas sobre o que se chama desenvolvimento. Penso em tudo o que é incrível hoje, e complexo, e inimaginável há tão pouco tempo. Ao mesmo tempo que o que neste voo acelerado, percebo como se foram arrancando raízes essenciais, sem as quais ainda conseguimos viver, sim, durante algum tempo, talvez… Sabendo que no limite, quando nos sentimos absolutamente sozinhos, sem ecos, sem espelhos, sem sincronias com outros, sobrevivemos apenas num modo a-narrativo. Inebriados pelo excesso de estímulos, dos algoritmos, os filtros, um embrulho impermeável. Como uma bóia borracha que nos impede de afogar, e ao mesmo tempo nos leva subtilmente para uma distância de onde alguns de nós nunca saberemos sair.

Espero que cada bebé possa ter alguém que lhe conte histórias. Sem livro. Estórias de quem lhe conta as histórias. Espero que cada bebé consiga um dia olhar para o mundo e compreender que a memória está dentro de cada pessoa e que é feita das narrativas que se vivem e experimentam. Absolutamente.

Referências bibliográficas

Bakhtin, M. M. (2010). The dialogic imagination: Four essays. University of Texas Press.
Bell, J. S. (2002). Narrative inquiry: More than just telling stories. TESOL Quarterly, 36, 207-213. https://doi.org/10.2307/3588331
Bock, J. (1999). The socioecology of childrens activities: A new model for work and play. Biennial meeting of the Society for Research in Child Development.
Brockmeier, J., & Carbaugh, D. A. (2001). Narrative and identity: Studies in autobiography, self and culture (Vol. 1). John Benjamins Publishing.
Cohn, J. F., & Tronick, E. Z. (1983). Three-month-old infants’ reaction to simulated maternal depression. Child Development, 185-193.
Consoli, S. (2021). Uncovering the hidden face of narrative analysis: A reflexive perspective through MAXQDA. System, 102, https://doi.org/10.1016/j.system.2021.102611
Dunbar, R. I. M. (2017). Group size, vocal grooming and the origins of language. Psychon Bull Rev, 24, 209–212. https://doi.org/10.3758/s13423-016-1122-6
Figgou, L. & Pavlopoulos, V. (2015). Social Psychology: Research Methods. In J. D. Wright (Ed.-in Chief), International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences (2nd ed., pp.544-552). Oxford, UK: Elsevier. http://doi.org/10.1016/B978-0-08-097086-8.24028-2
Fink, W. L. (1982). The conceptual relationship between ontogeny and phylogeny. Paleobiology, 8, 254-264. https://doi.org/10.1017/S0094837300006977
Good, B. J., & Del Vecchio Good, M. J. (1994). In the subjunctive mode: epilepsy narratives in Turkey. Social science & Medicine, 38, 835-842. https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90155-4
Greenhalgh, T. (1999). Narrative based medicine in an evidence based world. BMJ, 318, 323-325. https://doi.org/10.1136/bmj.318.7179.323
Lancy, D. F. (1996). Playing on the mother-ground. Guilford.
Napier, A. D., Ancarno, C., Butler, B., Calabrese, J., Chater, A., Chatterjee, H. et al. (2014). Culture and health. Lancet, 384, 1607-39. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)61603-2
Nelson, G. (1978). Ontogeny, phylogeny, paleontology, and the biogenetic law. Systematic Zoology, 27, 324-345. https://doi.org/10.2307/2412883
Pellegrini, A. D., & Smith, P. K. (2005). The nature of play: Great apes and humans. Guilford Press.
Richardson, R. B. (2014). Narrative madness: The Quixotic quest for reality. Omar
Scholtz, S. E., de Klerk, W., & de Beer, L. T. (2020). The use of research methods in psychological research: A systematised review. Frontiers in Research Metrics and Analytics, 5: 1. https://doi.org/10.3389/frma.2020.00001
Tronick, E. Z., & Cohn, J. F. (1989). Infant-mother face-to-face interaction: Age and gender differences in coordination and the occurrence of miscoordination. Child Development, 85-92.
Turner, M. (1996). The literary mind: The origins of thought and language. University Press.

Para citar este artigo:

:PECEGUINA, Inês. Para o Infinito e Mais Além Sobre as Narrativas e o Esquecimento. – parte II. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/para-o-infinito-e-mais-alem-parte-2/, número 51, 2024

As culturas humanas são fundamentalmente narrativas, na sua essência, criando condições não apenas para que cada criança seja capaz de se tornar num narrador, um contador de histórias, do ponto de vista da competência comunicativa, mas propiciando, também, o desenvolvimento do seu eu autobiográfico (Brockmeier & Carbaugh, 2001).

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.