artigo de Maria Trincão Maia

Os Cravos Murcham

3 MIN DE LEITURA | Revista 50

Empunhamos as flores, pomos nas lapelas, nos cabelos… dos sacos de algodão, pendurados aos ombros, espreitam orgulhosos. São Cravos Senhores e Senhoras. São Cravos de Abril. Vermelhos, vermelho vivo, vivo como o sangue pulsante de quem fazia a revolução. São Cravos! Viva Abril, Viva o 25 de Abril. Viva a democracia!

O 25 de Abril foi há 50 anos. Envelheceu. Curioso que o símbolo da nossa pacífica revolução são flores, flores cortadas, flores que irão morrer passado poucos dias. O 25 de Abril foi-me ensinado pelos meus pais, o que aprendi na escola sobre esses tempos não chegou aos pés do ensinamento que tinha em casa. “O 25 de Abril foi o dia mais importante da minha vida” dizia o meu pai para uma das netas, que pouco percebe do que se fala. A importância do 25 de Abril, da revolução, mas fundamentalmente da Liberdade foi passada em casa, nas canções que ouvia desde de pequena, das músicas do Zeca, do José Maria Branco, do Sérgio Godinho. Nos livros que nos liam, na importância que davam. A Liberdade de se ser quem é, de se falar e de poder ter opinião. A minha mãe conta que muitos pais de colegas eram presos durante a noite em rusgas da PIDE.

E o que frusta? É a dificuldade de passar a mensagem. Eu cresci neste ambiente, mas quantos colegas meus cresceram neste ambiente? Tenho 37 anos e não sei para quantos da minha geração o 25 de Abril tem o mesmo peso do que para mim. Os pais da minha geração viveram Abril, mas passaram os filhos?

Vi a extrema direita a crescer em Portugal, vi o discurso populista, do medo, da diferença, crescer. Quase 50 ou mesmo 50 deputados na assembleia. E agora? E agora como se faz? A democracia tem ciclos, uns à esquerda e outros à direita. Mas quando apagamos palavras como fascistas, quando lhe retiramos valor ou significado, como ficamos?

Os cravos murcham.

As pessoas estão cansadas, tão cansadas de tanta coisa que corre mal, a vida é difícil em Portugal. E quem nos ouve? Quem ouve os lamentos de um povo cansado, desamparado, esquecido? A tristeza dá lugar à raiva, o lamento dá lugar ao medo. Um país com rendas que sobem, políticos corruptos, trapalhadas políticas, comunicação social sangrenta e tendenciosa. Guerras na Europa, guerras fora da Europa, fome, miséria. Aqui dentro, lá fora, em todo lado. E a sensação de um futuro vazio, da mesma coisa, ano após ano. O interior despovoado, os velhos esquecidos, os sobreiros arrancados, os medos, os choques sociais. E quem ouve um povo cansado de imigrar? Somos mais de 2 milhões lá fora, com saudades de casa, com saudades deste país.

E ela vem, sorrateira, fala fácil, nas ondas que dá jeito, dança contra minorias, vai buscar velhos ditados que parecem novos. Os mais novos não sabem, os mais velhos estão cansados. Vem por novos meios de comunicação, faz palhaçadas e algoritmo cresce, goza com os que gostam e com os que não gostam. E cresce. Novos meios comunicação velhas formas, o populismo ganha porque reduz a complexidade. Reduz a diversidade. Reduz a vida. Mas usa palavras simples, entram nos ouvidos cansados e nos que não sabem.

Vem com cheiro a revolução, a mudança, a limpeza. Mas é o cheiro de um perfume que esconde a podridão e o estrume… o cheiro imundo de quem vai retirar a liberdade.

A quem? A quem agora acha que ela é a solução. O jogo é sempre o mesmo. Minorias, pessoas racializadas, mulheres, carenciados, esquecidos e marginalizados. Ela cresce na Europa, no mundo, com líderes que se intitulam enviados de Deus. Ah que deus este que já matou tantos e humilhou outros tantos. Que deus este que dorme enquanto definhamos. Pátria, Família e Deus. Ironia das três palavras que deviam ser amparo e se tornam prisões. E que obsessão esta por enviados especiais? Para enviados especiais sejam jornalistas e vão ver as guerras que estes líderes fazem. Para enviados especiais vão ver a destruição do planeta. Sejam enviados especais úteis, não uma cambada de sedentos de poder.

Os que amam a democracia revoltam-se e começa a onda de “nós” e “eles”. Parabenizam quem votou nos fachos que tem o que merecem, zangam-se, revoltam-se. Separam-se dos restantes. Nós e eles! Não somos iguais…não?  Eu fico perdida nos pensamentos do que me distingue de um votante de extrema direita. O que correu mal aqui neste país? O que está a correr mal na Europa e no mundo?

Aponto o dedo para mim, nunca vi a semente de um cravo, mas sempre comprei cravos. Compramos todos anos cravos, mas será que compreendemos como os semear? Talvez com o murchar dos cravos lhes vejamos as sementes. E com a quantidade certa de estrume possamos semear cravos. Temos que fazer diferente, podemos fazer diferente. Vamos com a vendedora de cravos ao fornecedor de cravos e vamos conhecer todo o processo, vamos ser ecossistemas com a nossa querida e amada Revolução de Abril.

 

Quem sabe semear um cravo?

 

25 de Abril Sempre!

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Os Cravos Murcham. Vento e Água – Ritmos da Terra,https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/os-cravos-murcham/ , número 50, 2024

Ela cresce na Europa, no mundo, com líderes que se intitulam enviados de Deus. Ah que deus este que já matou tantos e humilhou outros tantos. Que deus este que dorme enquanto definhamos. Pátria, Família e Deus. Ironia das três palavras que deviam ser amparo e se tornam prisões. E que obsessão esta por enviados especiais? Para enviados especiais sejam jornalistas e vão ver as guerras que estes líderes fazem. Para enviados especiais vão ver a destruição do planeta. Sejam enviados especais úteis, não uma cambada de sedentos de poder.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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