artigo de Maria Trincão Maia

Os Tecedores de Magia

4 MIN DE LEITURA | Revista 47

“Se o meu avô fosse vivo eu não andava na azeitona!!!”

– barafustei passado uma hora e meia de ter começado a longa jornada de (apenas) dois dias da apanha da azeitona. Tenho com esta actividade uma relação tortuosa. O prazer de ter uma quantidade homeopática do azeite das nossas azeitonas, e digo homeopática porque a quantidade de azeitona que entregamos no lagar não é o suficiente para podermos garantir que o azeite que temos é só das nossas oliveiras. Mas acreditamos, como uma fé a Santa Azeitona, que entre tantas outras azeitonas de tantas outras pessoas, estão ali as nossas também. E vem naquela quantidade mínima, diluída, mas ainda assim poderosa para nos alegrar, acalentar e alimentar a alma. Depois a cor, a cor das folhas da oliveira, a textura dos troncos das árvores, uma palete de cores inacreditáveis. O pensamento perdido de formas de trazer a cor das folhas para uma tinta feita de forma natural. O amanhecer, as cores que são povoadas de tantas outras vidas. O estar na presença de tão sábias árvores, viram-me crescer, viram a minha mãe crescer, estavam lá no início, onde tudo começou. Arderam e renasceram, numa só vida que chegou antes da minha e irá ficar muito para além de mim. Renderem-nos no conhecimento que só posso um dia desejar ser-lhes húmus.

Novamente para a azeitona, fora toda esta envolvente, em que me perco no olhar, existe em mim um azedume por fazer tal tarefa, não gosto. Não sei porque não gosto, mas não gosto. Não fosse um compromisso familiar, não o faria. Então refugiu-me no meu avô, no mimo de ser a menina, no mimo de existir um mundo mágico. O meu avô completaria 100 anos em janeiro, infelizmente em dezembro fazem 13 anos que partiu. Era um homem como todos os homens, com defeitos muitos e qualidade imensas. Mas era aquilo que entendo como um Tecedor de Magia. Não sei se existe este arquétipo.

Este texto não é de pesquisa, é de sentires, de mastigação e ruminação. É das entranhas. Não sei se em todas as famílias existe esta figura, ou se esta figura tem sempre as mesmas formas, mas talvez valha a pena viajar por entre nuances e pormenores, entre sentires e sorrires. Entre o presente e o passado para reconhecer alguém com estas características.

O meu Tecedor de Magia, porque não posso garantir que existe unanimidade na minha família na minha perceção, porque um ser humano é demasiado complexo para o reduzimos a só uma missão ou tarefa. Percebi a magia que ele criava na sua ausência. Não é sobre a velha frase: só damos valor áquilo que perdemos. Mas sobre como às vezes as nuances daquilo que fazemos são tão subtis que parecem diluir-se no quotidiano, passam despercebidas. Como uma teia de aranha translúcida, mas que agarra as gotas de orvalho. Foi o meu avô que me ensinou a trabalhar com madeira, a fazer pequenas coisas. Nestes dias, estive a restaurar as primeiras peças que resgatei com ele. Um conjunto de duas gavetas, não é um móvel, são apenas duas gavetas pequenas em separado, faziam parte da “sala” de caça do meu avô, embora ele nunca tenha sido caçador, ou tivesse alguma aspiração a tal. Mas existia, no sótão, essa divisão que estávamos devidamente proibidos de entrar sozinhos. Lembro-me de ir fazendo as coisas sobre a orientação dele, era uma miúda na altura. Anos se passaram e as gavetas deixaram de ter utilidade e arrumei-as para um canto no mesmo sítio em que as desencantei anos antes.

Por sorte, escaparam a rajadas de “destralhanço” desequilibrado. E há pouco tempo reencontrei-as, tenho estado a cuidar delas, tiro-lhes o caruncho, tapo os buracos, e estão já tão furadas e tão velhas que, não fossem elas representar mais do que a sua forma, não teriam salvação. Este processo relembra-me a magia criada à minha volta pelo meu avô.

Ele não criava um mundo novo para nós, pelo contrário, ele não nos criava um mundo de ilusão cor de rosa, mas acrescentava esperança, proteção e carinho ao nosso mundo. Ele contava quem nós eramos, o que precisávamos de ser e ensinava-nos pela sua vivência a resiliência em forma de esperança. Porque mesmo nos tempos mais duros ele sabia que havia ainda mais do que o que ele estava a passar. O avô nunca perdeu a esperança. O meu avô morreu quando eu tinha 23 anos, e foi depois disso que, com grande choque, eu descobri o preço de uma série de materiais que utilizava para fazer as minhas coisas. Porque era ele que arranjava o que eu precisava, eu explicava-lhe o que queria e ele dizia: o avô trata disso. E por artes mágicas apareciam, era ele que ia às lojas de ferragens e conhecia o que era preciso, as lojas de ferragens são dos sítios onde mais gosto de ir. Um dia ainda criança quis uma caixa de madeira, e o avô fez uma caixa de madeira, depois adolescente desenhei o meu primeiro móvel e o avô fez o meu primeiro móvel. O avô não era carpinteiro, era o hobby dele. O avô guardou as primeiras mobílias que fiz de madeira, um conjunto tosco que fiz junto dele, teria uns 8/9 anos. Encontrei-as ao pé das gavetas, junto de todas as coisas que o avô guardava que eram minhas no espaço dele, uma oficina de carpintaria num sítio a que sempre chamos adega.

Antes de morrer, o avô plantou um pomar para que tivéssemos fruta, temos maceiras, romãzeiras, pereiras e mais umas quantas árvores. Mandou unir dois anexos para que tivéssemos uma tertúlia. E não, não havia dinheiro para fazer estas coisas todas, mas o avô achava que era importante nós encontramos o nosso lugar de convívio com os amigos fora das paredes da casa de família. E no hospital, a uma semana de morrer, o avô estava a arranjar soluções para que a nossa avó pudesse sair e entrar de casa de cadeiras de rodas. O avô não era só um cuidador, só alguém que mimava os netos. O avô criava em nós um senso de esperança, sem nunca usar a palavra para isso. Era a aura dele.

Olhando para trás não é de estranhar que entrasse em design de equipamento para desenhar móveis, não é de estranhar que passe a vida a restaurar e resgatar coisas velhas. Nenhuma das minhas escolhas foram conscientes, até eu perceber que a magia dele já não estava presente, até eu perceber que já ninguém tecia magia. Também não é de estranhar que eu estivesse para nascer no dia de anos dele, mas nasci 3 dias depois.

 

 

O texto tem um carácter muito pessoal e íntimo, um abrir de um mundo meu, porém só a mostrar as pequenas nuances de um dia a dia, as pequenas coisas não ditas, as coisas feitas e guardadas que posso transmitir o que é para mim é o Tecedor de Magia e assim facilitar que possam também reencontrar o vosso. Reconhecer aquela pessoa, aquele ser não humano, que faça sentir este tipo de alento. E esperançar que todos tenham alguém assim. Porque a magia não são grandes fogos de artifício ou gestos audíveis, a magia está nas pequenas coisas. E num mundo que está dilacerante, é preciso um lugar onde possamos respirar para seguir.

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Outono. Vento e Água – Ritmos da Terra,https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-47/os-tecedores-de-magia/ , número 47, 2023

Ele não criava um mundo novo para nós, pelo contrário, ele não nos criava um mundo de ilusão cor de rosa, mas acrescentava esperança, proteção e carinho ao nosso mundo. Ele contava quem nós eramos, o que precisávamos de ser e ensinava-nos pela sua vivência a resiliência em forma de esperança.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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