artigo de Maria Trincão Maia

Ode a Gala

2 MIN DE LEITURA | Revista 49

Perco-me nos seus olhos azuis. O meu reflexo no seu olhar tranquiliza-me.

Espreguiça-se em cima da cama, como se fosse o seu território.

Enrosca-se mais um pouco, enquanto os raios de sol entram pela janela.

Encosta a sua cabeça no meu queixo e aninha-se. Descansa e eu descanso.

A certeza da criação de um universo só nosso, onde mais ninguém pode entrar. Não é permitido.

A convivência de muitos anos torna-nos simbióticas.

Eu choro e ela vem, eu tenho dores e ela vem. Sabe melhor do que eu, conhece o que não é dito, a sua sensibilidade é maior. Não precisa de explicações, não precisa de pedidos. Vem e fica, fica o tempo que é necessário, sem pressas e sem cobranças.

Passeia-se pela casa, o seu andar elegante balança o ar. É dela a casa, diante dela nada me pertence. Conhece as casas que habitamos como se fossem construídas por ela. Reconhece-se-lhe os ciclos, os interiores e exteriores.

Aninha-se mais um pouco, os dias passam, a minha distração torna-a muda. A pele aproxima-se dos ossos, estou cega, surda. Não fala, mas aninha-se, procura o quente e o sossego. A nossa simbiose devia bastar, mas eu esqueci-me de como se ouve. Não ouço, até que da carne entre o osso e a pele seja escassa o suficiente para dar o alerta.

O meu desespero começa, agora vejo e não sei o que fazer. Sento-me no chão e choro, choro por ela, pela ausência dela e ela vem. Enrosca-se, ela sabe.

Olho nos olhos azuis, baços, cansados e chorosos. Começo ao longe a ouvir a sua voz, não é igual à minha, não é igual a nenhuma.

Come no meu colo, com esforço e coragem. Olha para mim entre colheradas. Procura apoio, consigo-o perceber. Consigo-a ouvir, finalmente, calei a minha voz para a ouvir a dela.

Não palavras, quase sempre silêncio. Aprendo a sua língua, chegou a altura de retribuir, não por mim, mas por ela e por nós.

Lembro-me da primeira vez que senti um amor maior que a vida, maior que o peito, um amor que doí e não tem explicação. Foi por ela, com ela nos meus braços.

Aperta-me o dedo com as suas garras e olha para mim confiante, temos mais tempo, não sei quanto mais. Aperto-a com carinho enquanto a alimento e digo-lhe: não vou desistir. Ela olha-me chateada, danada, nunca precisou de ser contrariada. Refila, mas não se afasta, deixa que a envolva uma vez mais na toalha. Mais um bocadinho, digo-lhe.

A carne volta aos poucos ao seu corpo, as suas manias voltam e o seu território volta a ser dela.

Olho no seus olhos azuis únicos, o seu nariz cor de rosa encosta no meu. E deixo-me render na certeza que lhe pertenço, respiro de alívio.

A Gala tem 14,5 anos, é uma felina que me educa a ser humana. Não sei quanto tempo mais estaremos juntas, espero que anos. Na possibilidade da sua morte encontrei outra linguagem, a língua esquecida dos mamíferos. E tento aprender a estar para ouvir. A calar para saber.

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Ode a Gala. Vento e Água – Ritmos da Terra,https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/ode-a-gala , número 49, 2024

Olho no seus olhos azuis únicos, o seu nariz cor de rosa encosta no meu.

E deixo-me render na certeza que lhe pertenço, respiro de alívio.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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