Entrelaçamentos Inegáveis
Coluna de Telma G. Laurentino
4 MIN DE LEITURA | Revista 49
A bênção do plástico
Amor e asco entrelaçados, a serviço do pensamento ecossistémico
Olha o que me deram de prenda de Natal! Diz ela numa voz sarcasticamente empolgada enquanto sorri. Quando me estende a mão aberta vejo uma vela de plástico a pilhas.
Pego na “vela”. De sobrolho franzido olho fixamente a coisa num longo silêncio. Ela ri, conhecedora dos meus sentimentos em relação a imitações de plástico de qualquer tipo, adivinhando a cacofonia indignada interna á minha tranquilidade aparente.
Mas olha, arde para sempre sem perigo de fogo! Brinca ela.
O objecto pareceu-me tão metaforicamente pesado na minha mão que criou um peso real no meu coração.
Falo baixinho: Exacto, alguém te ofereceu eternidade da forma mais cretina possível… Isto vai cá estar muito depois de qualquer ideia da vossa existência… a circular no sangue de gerações por vir…
Espero pelo virar de olhos exasperado do “pronto, também é preciso tanto?!” Mas não vem. Em vez disso, ficamos as duas a olhar para a “vela”. Uso a ausência da repreensão como convite para me expressar um pouco mais livremente, partilhar um bocadinho mais do que o coração quer dizer… só para saber como é quando sai de mim… Calma, deixo fluir:
É tão incrível, a quantidade de violência contida numa coisa tão pequenina, oferecida com intenções de carinho, sabes?! Os metais e minerais das pilhas foram extraídos de uma terra longe que nem conhecemos, por mãos muito provavelmente exploradas… O mercúrio da pilha pode contaminar águas subterrâneas escassas se não tivermos cuidado a mandar fora, e mesmo que tenhamos… e este plástico duro, feito de crude fóssil milenar, extraído violentamente da Terra, foi moldado na China por mãos definitivamente exploradas, talvez até Uyghurs num campo de concentração; e depois disto tudo… esta coisa vai cá estar por séculos, a permear o ecossistema terrestre nas suas muitas formas não-orgiânicas… a magoar vida no processo… e há tanto mais consequências que não conhecemos ainda… Parte-me o coração, produzirmos uma coisa assim por 2 euros de lucro para uma empresa e depois, embrulhamos este pequeno token de violência monumental como presente, num gesto de “Agradeço-te, aprecio-te”… Estamos assim tão exaustes?
Levanto os olhos da mão. Pode vir ainda, o virar de olhos. Mas não. Há apenas um silêncio triste de lábios recolhidos. Aquele que ofereçemos uns aos outres para dizer “sim, eu também me sinto impotente. Também me dói.”
Seguro a “vela” e pergunto numa voz mais leve: Posso ficar com ela?
Ela ri. Que vais fazer com isso?
Vou pô-la no meu altar.
Tentámos já a campanha do asco e da esquiva ao plástico que venceu mudanças políticas importantes dentro das nossas comunidades locais urbanizadas, e criou Mercado para a criação de alternativas mais saudáveis. No entanto, a produção de plástico está (e espera-se continuar) a aumentar globalmente.
De acordo com números da OECD, ‘o consumo de plástico quadruplicou nos últimos 30 anos’, devido ao crescimento dos mercados emergentes. A produção global de plásticos duplicou de 2000 para 2019, alcançando os 460 milhões de toneladas.
A maioria do plástico circulante é ainda plástico primário: produzido de novo, já que a gestão e reciclagem globais de lixo plástico falham miseravelmente. Toneladas são exportadas do norte global e acabam a contaminar águas potáveis e ecossistemas na África e na Ásia. Como de costume, os mais vulneráveis pagam pelas ideias de conforto distorcidas dos colonialistas bêbedos de petróleo.
Há sempre uma ligação próxima às atrocidades sócio-ecológicas que ficam “longe”. A nossa preocupação com a poluição de plástico no lago Tanganyika pode traduzir-se na resistência a projectos de fracking nos nossos países. Os nossos consumos e gestão de resíduos locais têm consequências globais. E estes laços entre o perto e o longe não deverão desesperar-nos, mas motivar-nos a agir, aqui. Porque todos os ecossistemas terrestres estão intimamente entrelaçados conosco, em nós.
Negar os nossos enredos com expressões plásticas dos combustíveis fósseis enquanto: as vestimos, fumamos, mascamos, utilizamos na decoração das nossas casas… é no melhor dos casos imaturo, e no pior, violento. Aceitar alegremente o nosso entrelaçamento com a floresta amazónica (porque a respiramos!), e negá-lo com a Amazon Inc. é bypass e distração ignorante que trai qualquer conexão verdadeira com a Terra.
Que espaço tem então o meu altar para esta manifestação distópica do tecnocapitalismo colonial? Num altar dedicado à lembrança da beleza da complexidade da vida, das suas imanências e ritmos, dos seus mais lindos entrelaçamentos…?
A “vela” ocupa o espaço mais sagrado de todos: o lugar onde se alquimizam ideias de pureza, excepcionalismo e desresponsabilização. O espaço onde a dormência, complacência e o “evitar pensar nisso” não são mais aceitáveis. O lugar de onde brotam e se enraízam o respeito, a responsabilidade e a resistência.
Honestamente, o único espanto é como mantive o plástico intencionalmente fora este tempo todo, apesar dos muitos convites à consciência feitos por sensações, outros humanos e outras espécies… Levou-me algum tempo a ouvir. Mais do que levou às bactérias, às traças, aos escaravelhos e aos fungos a transformar petroquímicos em metabolismo.
Não pretendo insinuar que a repulsão visceral que sinto em relação a objectos de plástico deve ser exorcizada! De maneira nenhuma, é um guia muito útil. Apenas que o que a “vela” interroga é:
Como poderá o amor desafiar o descartável?
Como poderá o amor oferecer respeito ao “eternamente poluente”?
Como poderão o amor e asco entrelaçados nutrir a consciência da porosidade dos ecossistemas ao nosso consumo?
E se, mais que indiferença ou repulsa, o amor falasse quando pegamos em plástico para consumir e nos lembrasse: Seguras milhões de anos de transformação da vida em polímero fóssil, extraídas árdua e violentamente do nosso ecossistema, e seguras também violências futuras. Será necessário? Será essa uma prenda digna de dizer “Obrigada”?
Esta “vela” permanecerá no meu altar enquanto eu puder mantê-la longe de aterros e corpos de água. Será espelho e símbolo das violências da sua criação e destruição. Permanecerá pergunta e prece:
Que não nos tornemos tão exaustos que nos esquecemos de Casa. Que relembremos sempre os nossos entrelaçamentos com todas as vidas da Terra.
Para citar este artigo:
G. LAURENTINO, Telma. A Benção do Plástico. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-49/a-bencao-do-plastico/, número 49, 2024
Como poderão o amor e asco entrelaçados nutrir a consciência da porosidade dos ecossistemas ao nosso consumo?
E se, mais que indiferença ou repulsa, o amor falasse quando pegamos em plástico para consumir e nos lembrasse: Seguras milhões de anos de transformação da vida em polímero fóssil, extraídas árdua e violentamente do nosso ecossistema, e seguras também violências futuras. Será necessário? Será essa uma prenda digna de dizer “Obrigada”?
Telma G. Laurentino
Bióloga
Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com
Workshop Vento e Água
Chá de Urtigas com Telma Laurentino
Uma cartografia ecossistémica das urticárias curadoras da modernidade.
Com Telma Laurentino – cientista, comunicadora e criativa. Conheça a sua voz na coluna “Entrelaçamentos inegáveis” na Vento e Água.