Mil-em-Rama
Coluna de Maristela Barenco
3 MIN DE LEITURA | Revista 48
Por uma “pequena via” de gestos invisíveis
Na vida… há que existir o tempo das sínteses, dos alinhavos e arremates. O tempo de reunir todas as linhas de força e de vida, que nos atravessam e atravessaram, em uma espécie de projeto de reciclagem (como se chama aqui no Brasil os pontos de coleta dos resíduos sólidos), para que outros ciclos possam despontar.
Faço parte de um grupo de estudos e pesquisas, de nome Flora, que está comprometido com filosofias e escritas outras, estas que são compartilhadas em um coletivo com ritmo próprio. Afinal, pensar, escrever e criar são artefatos que não estão nas esteiras das fábricas, submetidos a uma produtividade. E nesse processo temos tido diálogos com pesquisadores outros e temos vivido esses encontros de forma muito fértil. Dias desses veio o Gaivota, a falar para nós sobre a capacidade de sustentar gestos invisíveis e mínimos, incapturáveis. Temos buscado ser terra-fértil que acolhe essas sementes-ideia.
A semente-ideia aqui, inspirada em um filósofo italiano, Giorgio Agambem, é que o gesto precisa ser liberado de dois atributos que o limitam: o de ser meio para algo que não é ele mesmo; e o de nascer com uma finalidade prévia. Temos trabalhado sempre com essa lógica: reduzir os processos a ferramentas e instrumentos; ou gerá-los com uma intenção prescritiva prévia.
Mas como seria assumir a responsabilidade por sustentar um gesto em si, por ele mesmo, na contra-hegemonia do mundo?
Um gesto sutil, muito difícil de ser capturado por uma ordem econômica e por uma estrutura discursiva. Um nano-gesto ou um gesto menor, no sentido deleuziano de não pertencimento a um modelo. Um gesto invisível, mas que, sendo sustentado, ao longo dos anos, sem nenhuma finalidade, pudesse ser sentido como potência, como linha de força e composição. Um gesto passivo, que não se presta a projetos revolucionários, mas que apesar de nada fazer e nem nada produzir, mantém-se sensível às forças da vida, de tal forma, que vai se capilarizando pelos campos de força da Vida. Um gesto inútil, que nada quer desempenhar e nem produzir, que não está a serviço da fábrica.
O que seria um gesto sutil, incapturável, invisível, um nano-gesto, sem identidade e sem finalidade? Parece-me algo da ordem do institituinte e que emerge das grandes paixões, em seu estado nascente. É algo tão forte que, quando emerge, têm fôlego para a recriação da vida. É brasa acesa que se esconde sob as cinzas. É a paixão, cuja força é capaz de inspirar os movimentos que criam mundos outros.
Mas a questão aqui está em… como manter o institituinte como força-devir, sem transformá-lo em instituído? Porque, como uma linda e mágica joaninha, que voa entre os nossos dedos, precisamos ter a liberdade de não querer aprisioná-la. Precisamos ter a coragem de não nos fazer donos, de nada querer capturar.
Como sustentar a beleza da passagem de uma joaninha pelos nossos dedos, que nos ensina sobre a certeza da teia da vida? Como viver essa paixão como linha de força, sem nada querer instituir, apenas sustentar?
Há uma Santa, na Igreja Católica, que nos traz uma ideia interessante, que pode ser arrematada com os gestos mínimos. É Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela teve uma vida muito breve e faleceu aos 24 anos. Mas quando ela se deparou com o sonho de uma vida santa, no Carmelo de Lisieux e, ao mesmo tempo olhava para sua condição humana e limitante, ela sabia que havia uma distância muito grande. Então, ela teve uma ideia, uma espécie de plano de vida que, com os seus devidos ajustes, pode nos inspirar nos caminhos de criação e sustentação de gestos mínimos. Ela criou a sua “Pequena Via”, uma espécie de elevador virtual que, segundo ela, poderia aproximá-la do ideário com o qual ela sonhava. Em sua “pequenina via”, ela previu quais seriam os gestos mínimos (e insignificantes e não previstos) que ela poderia sustentar, como, por exemplo: ela não conseguia prestar atenção à oração do terço, mas conseguia ter paciência com uma irmã, que ao lavar roupa, molhava a todas as que estavam ao seu lado (e que as outras não tinham paciência com ela). Então ela cria uma via própria, de gestos mínimos, com os quais ela se comprometeu sustentar, com grande invisibilidade, mas com infinito amor.
Penso que nestes momentos de transição de ciclo, seja no solstício de inverno (para o hemisfério Norte) e de verão (para o hemisfério Sul), a passagem do Natal, a chegada do novo ano, precisamos despertar, de dentro de nós, forças minimamente lúcidas, que nos fazem perceber que, a essa tal humanidade há tempos já fracassou. Como explicar o genocídio de 12 mil crianças palestinas?
Enfim, ressensibilizar um mundo tão grande e tão diverso pode passar por uma pequena via de gestos mínimos, nano gestos, que, sustentados porque sim e por amor, quem sabe possa liberar linhas de força para uma Vida que precisa ser reencantada? Fica a inspiração!
Para citar este artigo:
BARENCO, Maristela. Por uma pequena via de gestos invisíveis Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/por-uma-pequena-via-de-gestos-invisiveis, número 48, 2023
Mas a questão aqui está em… como manter o institituinte como força-devir, sem transformá-lo em instituído? Porque, como uma linda e mágica joaninha, que voa entre os nossos dedos, precisamos ter a liberdade de não querer aprisioná-la. Precisamos ter a coragem de não nos fazer donos, de nada querer capturar.
Maristela Barenco Corrêa de Mello
Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais
Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.
Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF
Instagram: @mil_em_rama
E-mail: maristelabarenco@gmail.com