O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

2 MIN DE LEITURA | Revista 48

ORA ET LABORA ET AMARE

 

Levantei-me da cama em direcção à minha rocha de eleição para testemunhar o nascer do sol nas cores particulares destes dias frios, na despedida da valente tempestade que grassou a noite. O silêncio da montanha aquieta-me a mente e não fossem os gatos que ali ao canto se acomodam, dir-se-ia que tudo dorme.

Momento a momento observo o renascimento da luz, a dádiva de um novo dia e um estremecimento de emoção ocupa-me o coração, nesse maravilhamento perante o Grande Mistério. Na realização da minha pequenez, rezo uma prece de rendida gratidão.

Averiguo os galhos arrancados das árvores, as telhas caídas ao chão, as tábuas partidas, a cadeira que voou, os vasos quebrados, o movimento das coisas após o temporal. As muitas vidas para além da minha vida. Pergunto-me como estarão os cavalos, o casal de raposas, a coruja e as salamandras, a minha vizinhança mais próxima. Espero que estejam bem e rogo por todos.

Aos pés admiro um intrincado puzzle de folhas em tons multíplices de verde, amarelo, castanho e cinzento. Quanta beleza! Também os musgos brilham vistosos, vaidosos na sua roupagem fresca e cintilante, como quem se mostra numa passarela. A geada voltou. Que bom. É reconfortante saber que, apesar de tanto turbilhão no mundo, há certa constância nos ciclos mágicos da Natureza. As lágrimas teimam em sair do olhar emocionado, talvez sejam as minhas águas profundas a querer dançar com as gotas na casca das árvores. Abraço os carvalhos e sussurro-lhes votos de amor.

Como explicar este sentimento de reverência e devoção? Como fundamentar a necessidade premente de orar a todas as formas viventes, de cantar odes laudativas ao mundo, por mais escangalhado que esteja? Como não o fazer?

Lembro as rezadeiras minhas ancestrais e, na medida que os anos por mim passam, vou entendendo cada vez melhor a função do rezar, esse tecer cuidado de carinho, fé, gratidão, propósito e esperança em reconhecimento e acolhimento, na necessidade ou na fartura.

Talvez nos fizesse bem rezar mais. Não falo das recitações demagógicas das religiões patriarcais, falo das orações bravias e honestas que saem de um coração vivo e atento num corpo que sabe o que é amar profundamente.

Nas últimas décadas foram feitos vários estudos clínicos que mostram que a espiritualidade e a oração são ferramentas preciosas de cura. Os resultados são reais.

No entanto, orar é considerado pelo pensamento moderno como um hábito que caiu em desuso, uma vã superstição ou um resto de barbarismo. E por isso, ignoramos quase completamente os seus efeitos.

Também há uns anos saiu um estudo científico sobre sincronização interpessoal entre casais onde se verificou que quando um parceiro empático segura a mão da companheira com dor, os ritmos cardíacos e respiratórios se sincronizam e a dor é dissipada.

Na sexualidade sagrada há muito que sabemos desta sincronização e são muitas as artes para prosperar amor e intimidade com ela. E interrogo-me em devaneios mais ou menos ébrios de potencial como seria se nós sociedade nos tocássemos mais, em rezo e devoção, em jeito de nos bendizermos?

Nos laboratórios de sentir que facilito, constato o crescimento e a cura que acontecem na partilha de toque consciente, na comunicação clara de limites e fronteiras, desejos e necessidades. O poder que reside na coragem e na vulnerabilidade da dádiva de si na recepção de outrem.

Testemunho a espantosa capacidade de amar que temos dentro, de nos encontrarmos como iguais – não somos assim tão diferentes uns dos outros quando despimos as máscaras, as roupas, as projeções e o tempo. Quando nos afinamos numa mesma oração, rezada com outras almas.

Observo a pele envelhecida das minhas mãos, o custo de as ter ao serviço de tarefas na quinta ignorando as intempéries. Ossos do ofício de bruxa-sacerdotisa campestre. Também a elas oro por saúde, vitalidade, engenho e em profunda gratidão.

Estendo a oração ao corpo todo, oficina do fazer e do sentir.

Há muito trabalho para fazer. Tanto ainda que rezar.

Oremos irmãos e irmãs. Com o corpo todo.

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Querida Humanidade minha. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/ora-et-labora-et-amare/, número 48, 2023

Nas últimas décadas foram feitos vários estudos clínicos que mostram que a espiritualidade e a oração são ferramentas preciosas de cura. Os resultados são reais.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.