O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 46

Piar de Coruja e o Ritual da Lua Cheia

 

A coruja piou exigindo o ritual. Vem sempre nas noites de lua cheia, sempre, já lá vão muitos anos. Levanto-me com cuidado do nosso leito de amor, quente e perfumado pela intensidade das danças íntimas e dos óleos cerimoniais. Ele dorme com ressonar gentil, cansado e feliz. Ela dormita em emanação da beleza de quem se cumpriu em prazer refinado, a cama envolta numa aura diáfana. O meu corpo transborda gratidão e reverência. Do peito jorra um amor tão profundo que parece que brotam flores. São rosas senhor, são rosas, diria a outra senhora.

Visto o manto da gratidão e caminho descalça, os pés acostumados à paisagem reconhecendo cada entalhe da rocha, cada lugar de perigo, cada cardo e cada poiso seguro. Caminhar descalça é fazer amor com a Terra.

Observo os morcegos a dançar à volta do candeeiro de rua. Caçam mosquitos e constato pesarosa que neste verão houve muito menos insectos por aqui. Sigo o fio do pensamento e desdobro as causas e consequências desta constatação, apercebendo-me a tempo que não posso, agora não, baixar a vibração emocional do corpo, preciso manter-me cálice incorrupto do deleite sagrado para o fim do ritual.

Recordo os beijos dele, as carícias dela e estremeço de prazer. A leoa que me habita ruge satisfeita. Amar em liberdade é tanto um acto de rebelião quanto uma expressão total de reverência à Vida. Sou mulher reverente da Vida, Mulher da Vida. Quando terá sido manchada a sacralidade desta expressão?

Um dia em gabinete, um marido rancoroso pelas mudanças significativas e observáveis na esposa, perguntava-me qual a diferença entre o meu trabalho e o de uma prostituta (porque, convenhamos, uma mulher sem libido é muito mais fácil de manipular estando presa à culpa dos deveres matrimoniais) e eu, sentindo as garras a crescer, optei por guardar a faca na liga, terminei a sessão e convidei o casal a sair. Espero sinceramente que aquela mulher tenha continuado o seu caminho de empoderamento pessoal e tenha arrancado a mordaça da boca e da Vida. Até porque as mordaças devem ser usadas apenas em contextos sexy, sempre com consentimento estabelecido e cenários de muito prazer. Right, girls?

O mito da supremacia sexual do homem e a falácia da fidelidade monogâmica custam muitas vidas, preciosa saúde psíquica e física. Compreendo a monogamia, não me entendam mal, eu sei o que é amar profundamente uma só pessoa, ser-se abrigo e albergar por muitos anos um companheiro peregrino do mesmo caminho. Porém sei que há ciclos e estações e que às vezes os percursos individuais se transformam desembocando noutras formas de amar que vão além de uma só pessoa. E comprovo, uma e outra vez que o modelo monogâmico não é o único possível, nem o mais completo, mais moral ou santificado. Para muitos e muitas de nós será, mas não para toda a gente. Eu, definitivamente, sou mulher de amores amplos que não cabem no espaço de quatro braços, quatro paredes ou os limites de uma cama.

Noutros tempos esta afirmação levar-me-ia à fogueira e, ainda hoje, pode custar-me a vida. Tem sido uma auto-afirmação de expressão de afectos e intimidade cujo preço nunca foi fácil de pagar. Mas, orgulhosa, obstinada e ferozmente independente, sigo caminho nessa declaração íntegra do amor em mim.

A coruja volta a piar, insistente, impaciente, professora.

Junto a mim tenho o alguidar de barro, as plantas previamente colhidas e o pano de linho. Rezando à lua, à  montanha e aos carvalhos que me testemunham, inicio o rito. Recolho cada beijo, cada gota de suor, saliva e fluidos, reconheço as marcas das dentadas e agradeço cada gemido, cada grito, cada lágrima e gargalhada, cada etapa extática, colhendo de mim os frutos maduros deste Verão incrível, de tantos e tão bons amores amantes que tanto me ensinaram sobre mim, sobre a humanidade, sobre os segredos do Cosmos contidos e revelados no orgasmo.

Como Jacob, sigo caminho na escadaria mística, sabendo que é dentro do corpo que ela existe. E pegando no alguidar, preparo a poção mágica para a libação. Pela liberdade de amar.

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Piar de Corujo e o Ritual da Lua Cheia. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-46/piar-de-coruja-e-o-ritual-da-lua-cheia/, número 46, 2023

Um dia em gabinete, um marido rancoroso pelas mudanças significativas e observáveis na esposa, perguntava-me qual a diferença entre o meu trabalho e o de uma prostituta (porque, convenhamos, uma mulher sem libido é muito mais fácil de manipular estando presa à culpa dos deveres matrimoniais) e eu, sentindo as garras a crescer, optei por guardar a faca na liga, terminei a sessão e convidei o casal a sair.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.