artigo de Maria Trincão Maia

Existir é Transgredir

3 MIN DE LEITURA | Revista 48

Pensei durante muito tempo que mudar o mundo seria um gesto grandioso, algo heroico, porque todas as epopeias são grandes feitos megalómanos de um herói. Quase sempre homem, quase sempre solitário. Já escrevi sobre o salvadorismo para a revista, esse complexo de que iremos salvar e ou ser salvos por algo ou alguém. Seja o aniversariante de 25 de Dezembro, seja o D. Sebastião, seja o príncipe encantado ou o voluntario altruísta em terras pilhadas pela europa. Esse doce pensamento tão nefasto que nos faz sentir boas pessoas. Depois cheguei apenas a conclusão que mudar o mundo por inteiro é achar-se que se tem uma visão correcta para o mundo. Uma pessoa, uma visão, uma receita para o desastre.

Navegar entre a diversidade de hipóteses do que seria um mundo diferente sem se prender ao que assumimos como correcto ou como dado adquirido é tão dificil como assumir que não somos assim tão boas pessoas. Que não temos assim tanto crédito quanto isso e que temos uma tendência de reduzir seja o que for, para aquilo que conseguimos compreender. Mesmo que tenhamos uma capacidade de compreensão muito grande. Limitamos o universo do outro ao nosso universo e assumimos a universalidade da nossa narrativa.

E seguimos… quase sem pensar em mais nada. Ou se temos uma preocupação emergente e urgente em compreender o que podemos fazer para que o mundo ou os mundos ou sabe-se lá o quê seja diferente, assumindo o nosso complexo de salvador e tentando torna-lo útil sem ser colonizador. Debatemo-nos internamente até onde conseguimos, até onde a nossa limitada visão consegue. Deixamos de fora os pontos cegos que nem os reconhecemos. Mas existe no fundo… aquela necessidade de assistir aquele filme sobre aquela heroína ou herói, que mudou o mundo. Mas que mundo? E para quem é esse mundo que mudou? Porque no nosso mundo, este mesmo que vivemos em Portugal é essa a história que nos é contada, a do herói de feitos megalómanos. E claro que nós queremos ser essa história, porque nos vão amar mais. E vira e mexe e vamos todos parar ao mesmo, nós animais humanos só queremos ser amados e pertencer.

No meio desta epopeia descobrimos que há uma certa tendência para que seja sempre algum tipo de pessoas a conseguir tais feitos, uns certos dados viciados. No casino, a casa ganha sempre. Não gosto de casinos, nunca gostei.

Quando iniciei a escrita da minha tese, acreditava que só gestos megalómanos mudavam o design, que só algo que fosse tão estrondoso e tão incrível. Como o que aqueles tipos fizeram no início do seculo XX na Bauhaus, como todos os grandes designers mudaram a forma dos objectos e como nos relacionamos com eles. E congelei… e fiquei parada porque o vazio entre o que achava que era e o é realmente era tão grande que nenhuma ponte é possivel.

Ao ler sobre o feminismo no design de produto compreendi o que a minha orientadora me perguntava no início: restaurar é transgredir?

Quando percebi que o facto de ser mulher, desginer de produto (industrial) e com uma relação próxima com o mobiliário de madeira e a sua fabricação, ou restauro, é por si só uma transgressão. Para mim, maquinaria e ferramentas de carpintaria não teriam género. Entre martelos e pregos, entre tico-ticos e serras, o que me afastava era mais a não experiência de a utilização do que o meu género. Mas foi ao ler que historicamente existe sim uma barreira, uma mulher seria encaminhada para materiais ou tarefas tidas como secundarias, deixando a fabricação e desenho de moveis para os homens. A relação íntima com a madeira, as suas vontades e histórias eram do domínio do homem. Uma mulher não era designer de mobiliário e quando o era, era na sombra de um homem. Compreendi que continua a ser nas subtilezas que se encontram as mudanças.

Então respirei… percebi que muitas vezes existir é transgredir. E que a subtileza das nossas acções pode ser uma transgressão que muda algo. Às vezes é apenas saber o que está para trás, que a força da memória imposta não seja a forma que nos tolda o pensamento. Que desafiamos muitas vezes sem o sabermos. E que isso muda algo, mas que a consciência de que muda é valiosa para que não diminuímos a nossa existência num ecossistema muito maior do que nós. Para que não nos deixemos apagar na sombra de herói de uma narrativa viciada. Não existem heróis, não existem escolhidos.

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Outono. Vento e Água – Ritmos da Terra,https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/existir-e-transgredir/ , número 48, 2023

Ao ler sobre o feminismo no design de produto compreendi o que a minha orientadora me perguntava no início: restaurar é transgredir?

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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