Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

4  MIN DE LEITURA | Revista 48

A leveza dos esquecimento:
O tempo, a memória e o corpo inconveniente.

 

[Parte I] Parte II

Estou na zona de restauração de um supermercado com uma orientação que o coloca nos estilos de vida saudável. Observo uma criança, no máximo, com dois anos, de um lado a mãe, do outro o pai. Almoçam. O pai, de um lado, aproxima um garfo com arroz. Integral, quase de certeza. A mãe, do outro lado, faz chegar uma colher com sopa, ou um pouco de sumo de maça, beterraba e gengibre. A criança, ainda um bebé, recebe, ora de um lado, ora do outro. Tão sossegada, pensei. Logo a seguir, observo que, na sua frente, está o copo de sumo de abacaxi com hortelã e abacate (só um abacate, disse a senhora que preparou os sumos do dia, para não ficar muito espesso). Encostado ao sumo, está um telemóvel. E era ali que estava o bebé. Ali dentro. Alheado dos alimentos, alheado dos sabores, da experiência, ainda nova, de tantos sabores e texturas, incapaz de perceber se, em algum momento, já lhe bastava o que tinha comido e bebido. As opções alimentares eram saudáveis, sim. Mas o processo, a consciência e participação ativa e interessada na alimentação, que é sempre relação, não posso dizer que seja saudável. Também não sei se os pais estavam com pressa. Ou se usaram o telemóvel para distrair, porque estavam fora da casa. Somos todos vulneráveis e iliterados neste estar. Que é um não-estar. E se um episódio destes não diz nada sobre as pessoas, muitos, já dizem qualquer coisa. E é verdade que esta não foi a primeira, nem será a última vez em que os pais, educadores, adultos, no geral, se socorrem da distração para importar coisas para dentro de uma criança. Seja alimento, seja conhecimento, que e também, ou pode ser, uma forma de alimento.

É um tempo estranho, este. E talvez seja sempre assim. A grande diferença são os números. A quantidade de informação, de estímulos, a velocidade com que sabemos do que acontece no mundo inteiro. E nesse saber, tudo, o tempo todo, é cada vez mais, para mim, doloroso, a inabilidade para agir sobre isso. No confronto permanente com o sofrimento todo de tantas pessoas, não fazer nada. Sentir que não posso fazer nada. Que não devo fazer nada. A banalização do sofrimento, a banalização da intimidade. Ao mesmo tempo que nos dispomos (eu disponho-me) a re-conceptualizar a língua, a compreender que sim, que é preciso reconfigurar os conceitos, porque os conceitos são o que nos faz pensar e sentir e compreender de determinada forma, no limite, o que nos permite evoluir, crescer, importar uma certa forma de existência, em vez de outra.

Não sei o que fazer. Não sinto que possa fazer nada. Não tenho sequer a coragem para ajudar, porque um gesto qualquer de ajuda pode ser percebido como invasivo. Que arrogância! Afinal não conheço as pessoas, e também não sou exemplo para ninguém. Live and let live, certo?

Sinto uma urgência em arrumar. Perceber o que preciso. De quem preciso. E como quero que isso seja mostrado. Preciso de encurtar o horizonte. E de abandonar. Não sou uma pessoa do mundo, esse universo gigante. Existo numa escala pequena, e é pequena a quantidade de pessoas que preciso para me dar sentido. É na proximidade com o que existiu antes de isto tudo existir agora, as árvores, a terra, as paisagens acústicas, agora abafadas pelos carros e pela energia constante de toda a energia constante que, constantemente, precisamos para estar, sempre, sempre “ligados, onde sinto que preciso de estar. É nesses lugares vazios, lentos, onde, parece, nada acontece, que volto a sentir chão. E nessa sensação, de ter um chão, volto a ter corpo.

Sem filtros, sem ajustes de luz. E encontro um esquecimento. Que em vez de me angustiar, me sossega. E me alivia. Faz-me falta o corpo. A minha mente não é independente do meu corpo. É a partir relação do meu corpo com o mundo, que penso, sinto, e que ajo. Todas as experiências que temos acontecem sempre a partir desta matriz de relação com o corpo. E todas as experiências, mesmo as que são subjetivas (não serão todas?) são experiências de viver desse corpo no ambiente e nas interações sociais com as outras pessoas e outros elementos do ambiente.

Se, progressivamente, o meu universo de experiências, progride em distração, numa ilusão percetiva de que tudo estará para sempre disponível e registado, para quando eu precisar, como é que navego na minha própria existência que é finita? Ou será que nos podemos esquecer? Desse detalhe? Que um dia será um detalhe, irrelevante? Que a vida se vai transformar de tal forma, que dispensa o corpo, que todos os dados que tão ligeiramente cedemos, chegam para dar origem a uma existência nebulosa, e que isso chega, afinal para existir. Já não precisamos de corpo. É só um ponto de partida. Algures no tempo, podemos desligar o corpo, completamente, absolutamente, apagar o corpo, de forma sustentável, sem pegadas ecológicas, e existir para sempre, para sempre, para sempre.

O corpo-inconveniente.

O corpo-inconveniente para resolver. Como as batatas fritas que não apodrecem nunca.

O corpo apodrece. Que inconveniente. E nós, que somos muito mais que um corpo, seres especiais, que dispensam cada vez mais as coisas mais básicas, essenciais a qualquer bicho, do leite materno ao colo, dos afetos, da sensação da chuva, do calor, todas as sensações. Que absurdo. Tudo o que magoa. Que um dia se perceba como é que se pode desligar o corpo, mantendo a essência do eu etéreo, mas não efémero.

E que nesse clique, será um clique muito ligeiro, sem aquelas coisas pesadas da mecânica, as roldanas, coisas pesadas e metálicas, um clique que mal se ouve, talvez emita uma pequena luz. Clique. Corpo desligado. Tomara que tenham antes desse dia testado bem os algoritmos, com os mega-meta-dados. Os supercomputadores. Clique. Que arrumação. O corpo perturba tudo, de facto, com a sua habilidade para produzir coisas fedorentas. Um consumo constante para se manter vivo, e depois produz coisas fedorentas. Que inconveniente.

Salve-se a parte boa. Nunca a dicotomia humanos e animais foi tão verdadeira.

Um último clique.

Agora tudo estará para sempre nessa super memória.

Só não existe nenhum corpo para lembrar.

Nenhum corpo que se importe.

Que sossego.

Para citar este artigo:

PECEGUINA, Inês. A leveza do esquecimento: O tempo, a memória, e o corpo inconveniente. – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-48/a-leveza-do-esquecimento/, número 48, 2023

Não sei o que fazer. Não sinto que possa fazer nada. Não tenho sequer a coragem para ajudar, porque um gesto qualquer de ajuda pode ser percebido como invasivo. Que arrogância! Afinal não conheço as pessoas, e também não sou exemplo para ninguém. Live and let live, certo?

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.