Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

4  MIN DE LEITURA | Revista 47

A leveza dos esquecimento:
O tempo, a memória, e o corpo inconveniente.

 

Parte I

 

 Há relativamente pouco tempo, numa série sobre o dia-a-dia de duas jovens mulheres, neste tempo contextual onde vivo, a uma delas, numa espécie de entrevista de trabalho, alguém pergunta: 

– “Qual é o teu maior medo?” 
E ela responde (mais ou menos assim): 
– “O meu maior medo, é que, caso eu morra, todas as minhas contas nas redes sociais, sejam apagadas. Porque é como se eu nunca tivesse existido”. 
Que curioso, pensei. 
A mim, sem ter essa qualidade de medo, mas certamente de uma certa angústia, preocupa-me que as minhas contas, nas redes sociais, não sejam apagadas. E que eu não consiga desaparecer, completamente, desse universo virtualmente imortal. 
Estou confortável com o meu desaparecimento, quando eu morrer. 
A ideia de que não existe um mecanismo automático que receba informação através de outro mecanismo qualquer, que informe estes lugares virtuais de que eu já não existo, na minha dimensão de corpo, de existência física, que indissociável, para mim, a minha existência mental, preocupa-me. Claro que podem existir conteúdos, pensamentos, escritas, que eu produzi, e que permanecem depois da minha morte. Por esse eco, da minha existência, consigo sentir alguma estima. Como se fosse uma espécie de legado, uma memória, que não interfere com esse limite absoluto de ter, de facto, morrido. 
Mas o espaço virtual, das redes sociais, que se alimenta, quase sempre, do que é pessoal e, tantas vezes, íntimo que, para mim, nem faz sentido que ultrapasse as fronteiras das minhas relações, mesmo que estas variem em qualidade e intimidade, esse espaço, onde talvez todos, invariavelmente, neste ainda não saber até onde nos despimos, e porquê, apoquenta-me que habite em permanência uma história de quem eu fui, ou quis ser, como se eu ainda fosse, ou pudesse vir a ser. E como se isso tivesse sequer importância. 
A partir deste pensamento, que gradualmente funciona como árbitro ou baliza do que vou decidindo partilhar para, ou com, esse mundo sobre o qual não sou capaz, nunca, de desenhar um mapa, uma topografia, tenho pensado sobre como o esquecimento, para mim, o desapego da memória, uma certa memória ou registo, para mim, é uma possibilidade que me traz conforto.
  Quando era criança, a minha avó, como outros tantos avós que nasceram e viveram num mundo onde o registo escrito ainda não era uma obsessão, e o registo imagético não existia para a maioria das pessoas, a não ser, possivelmente, através da fotografia, no caso, a preto e branco,   a minha avó, contava-nos histórias. Algumas eram clássicos, como a menina dos fósforos, essa história triste de abandono, pobreza e morte infantil, mas também do amor entre uma avó e uma neta, na sua versão, uma história que sempre me impressionou tanto, mas que tantas vezes lhe pedi para contar. Outras, eram histórias da vida dela, ou das pessoas que eram moças, quando ela era moça. Os enredos, que incluíam sempre algum drama, alguma morte, e sempre uma desgraça, mas que tinham muitas vezes uma resolução, boa ou má. Outras ainda, eram as histórias de como ela vivia quando era criança, o que existia, como brincava, onde e como passava o seu tempo. E o que eu sentia, e ainda sinto, é como se através dessas histórias, ainda antes das minhas, ou na mistura das minhas, se fosse construído um sentido de eu-coletivo-familiar. A história dela seria, também, um pouco, minha. 
Um dia, quando ela já era uma velha madura, e se anunciava mais perto que pudesse morrer, oferecemos-lhe um livro em branco. Para que ela registasse as suas histórias. E ficassem para sempre, depois dela morrer. Ela escreveu. E hoje, claro, esse livro é um objeto precioso. E, ao mesmo tempo, um objeto que está guardado, em silêncio. Não voltei nunca a ler as suas histórias. E nesse apego ao livro que ela escreveu, com a sua mão, com a intenção do seu corpo, os seus pensamentos e memórias a tornarem-se permanentes, dessa forma que, apesar disso, por se tratar de um livro, um único livro, é também efémero, há também um certo desapego. Um dia, como a minha avó, vai desaparecer. 
Outra dimensão deste registo e acesso quase imediato aos registos, acontece, por exemplo, quando nos confrontamos com uma questão, uma dúvida, um não saber. Hoje, no lugar onde eu vivo, a maioria das pessoas não se demora na dúvida. O acesso à internet é fácil e, por isso, é fácil perguntar, vendo respondida quase de imediato essa questão. E isso é bom, claro. Mas é também, de algum modo, impeditivo da imaginação, do pensamento, da discussão, ainda nesse não saber. Imaginar as respostas, permitir que mais perguntas surjam, pensar hipóteses, todos esses passos, que são muitas vezes lentos e outras tantas, difíceis, são rapidamente silenciados através do acesso constante a motores de busca. 
Há uma violência qualquer nesta velocidade e nesta habilidade para que tudo fique documentado. Quando chega o Outono, para mim, a violência dessa velocidade é ainda mais premente. Preciso de uma certa decadência e destruição. Preciso de uma lentificação do movimento. A amplitude do movimento. Um nevoeiro, que subtilmente apaga o que não importa.
Há uns dias, também, ouvia uma filósofa, a pensar sobre porque decidimos que determinados conteúdos têm de ser aprendidos no processo de escolarização e, nesse pensamento, ela fala sobre a palavra importante. O que é importante é aquilo que é importado para o interior, neste caso, da pessoa, neste caso, sobre o conhecimento. E no limite, é sempre pessoal essa decisão. O que não é o mesmo que consciente ou intencional. Há muitas variáveis implícitas. E não é porque lá fora, fora da pessoa, se decide que um conjunto de factos, ou conhecimentos ou ferramentas são importantes que estes, realmente, são importados, lá para dentro. Não são. Não serão. Em algum momento da vida, surgirá esse nevoeiro, às vezes logo ali, que faz desaparecer esses importantes todos. Que, afinal, nunca foram mesmo importantes. 
E fico a pensar. Sobre o sentido do tempo, do tempo que dedicamos (ou fazemos outros dedicarem-se) a importar, fabricar memórias, quando a ausência de sentido, e de estrutura que integre ou valorize essas memórias, vai sempre resultar no esquecimento.  
E se ficássemos, só, nesse momento? Na observação, na sensação que o mundo e os outros ou outras coisas no mundo nos trazem. Se não tirarmos a fotografia, se não filmarmos, se não escrevermos, se não procurarmos a permanência e, sobretudo, se não procurarmos a permanência num espaço que é desprovido de corpo, de mudança, de decadência, como seria? 
É mesmo verdade que essa memória, a que fica por aí, e se dissipa e alimenta uma quantidade imensa de empresas que, nunca como antes, conhecem o homo-consumidoris ao pormenor do batimento cardíaco, do ciclo do sono, do ciclo menstrual, toda a informação que oferecemos e que, por ser uma oferta coletiva e quase mundial, permite melhor do que nunca encontrar respostas para as necessidades que ainda nem sabemos ter (e que provavelmente, nem são mesmo necessidades), é verdade que isso tudo, quando passa o nevoeiro, nos serve? E serve para quê? E durante quanto tempo? 

Para citar este artigo:

PECEGUINA, Inês. A leveza do esquecimento: O tempo, a memória, e o corpo inconveniente. – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-47/a-leveza-do-esquecimento/, número 46, 2023

E fico a pensar. Sobre o sentido do tempo, do tempo que dedicamos (ou fazemos outros dedicarem-se) a importar, fabricar memórias, quando a ausência de sentido, e de estrutura que integre ou valorize essas memórias, vai sempre resultar no esquecimento.  
E se ficássemos, só, nesse momento? Na observação, na sensação que o mundo e os outros ou outras coisas no mundo nos trazem. Se não tirarmos a fotografia, se não filmarmos, se não escrevermos, se não procurarmos a permanência e, sobretudo, se não procurarmos a permanência num espaço que é desprovido de corpo, de mudança, de decadência, como seria? 
Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.