Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

2  MIN DE LEITURA | Revista 46

Me, myself and I: da pessoa-epílogo à pessoa-prólogo

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Alguns autores têm vindo a sugerir que o adulto narcisista terá sido uma criança mimada (criança-prólogo?), excessivamente mimada pelos pais que, por tudo e por nada, a recompensavam, também excessivamente. Habituada a ver realizados todos os seus caprichos, a criança manteria esse padrão, esperando e exigindo o mesmo tipo de gratificação uma vez adulta (Millon, 1990).

Outros autores, porém, propõem que o narcisismo resulta, não da gratificação excessiva, a atenção excessiva, a luz toda derramada sobre a infância, mas exactamente, da ausência ou insuficiência de gratificação precoce (e.g., Kernberg, 1975).

A pessoa que, no prelúdio da sua existência, quando a pele e o não ainda não existem separadas do cuidador, não recebeu do cuidador a atenção e não viu respondidas as suas necessidades de ser cuidado (a primeira gratificação), será em potência narcisista. Uma criança que vai exigir mais e mais admiração, mais e mais atenção.

Numa tentativa para compensar tanto a falta de presença e disponibilidade psicológica dos cuidadores, enquanto criança, quer pela expectativa constante de que as suas necessidade nunca serão atendidas. Porque nunca, ou raramente foram.

A criança cujas necessidades físicas e emocionais são adequadamente atendidas (o que quer dizer que não são sempre, mas em boa parte), será uma criança menos ou pouco ansiosa. Uma criança que confia nos seus cuidadores, que experimentou ampla gratificação, e que tem de si uma imagem positiva, saudável. Espera, mas não exige, aprovação e admiração dos outros (Lapsley & Aalsma, 2006).

Pode ser solidão.

Talvez seja solidão.

No Reino Unido existe, desde 2018, um Ministério da Solidão.

 

Essa solidão da presença do outro, através dele mesmo. A pele, o olhar, o colo, o tempo, a disponibilidade, o tempo, a pele, a voz, a pele quente, o corpo, o tempo, estar ali, sem relógio. Essa ausência crescente e cada vez mais precoce do cuidador real, o um-para-um, o tête-à-tâte, olho-no-olho, sem interfaces, sem estímulos hiper desenvolvidos pela engenharia mais inteligente de que já se ouviu falar. Sem ruídos e distrações.

Pode ser solidão.

O número de pessoas que obtêm classificações elevadas em avaliações do nível de narcisismo (que não é sempre patológico), é maior nas culturas individualistas, comparativamente às culturas mais colectivistas.

Pode ser solidão.

Fico a pensar se é possível o lugar mais ao meio. Em vez de um vazio entre prólogo e epílogo. Ou estaremos sempre uns mais de um lado e uns mais do outro? A maioria onde estará? Feitas as contas, será equilibrado o resultado, a distribuição no desenho, se juntarmos os desenhos todos, de cada um?

 

Estas pessoas-prólogo, prefiro prólogo a narcisismo, porque me parece mais simples de resolver, ainda um livro todo a ser escrito, estas pessoas, sabem, aparentemente, dizer um não com firmeza, para fora. Primeiro elas. No seu universo, são sóis. Que a luz do seu ego as deixe ainda ver os outros, e não lhes arda tudo, ao seu redor.

Quantas vezes é que um não pode ser um sim desesperado?

Quantas vezes é que um eu pode ser um desejo de um nós, desesperado?

 

Referências bibliográficas

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787

Campbell, W.K., & Foster, C.A. (2002). Narcissism and commitment in romantic relationships: An investment model analysis. Personality and Social Psychology Bulletin, 28, 484-495. http://doi.org/10.1177/0146167202287006

Giovanni, N. (1979). The women and the men. William Morrow.

Kernberg, P. F. (1998). Developmental aspects of normal and pathological narcissism. In E. F. Ronningstam (Ed.), Disorders of narcissism: Diagnostic, clinical, and empirical implications (pp. 103–120). American Psychiatric Association.

Lapsley, D. K. & Aalsma, M. C. (2006). An empirical typology of narcissism and mental health in late adolescence. Journal of Adolescence, 29, 53-71, https://doi.org/10.1016/j.adolescence.2005.01.008.

Millon, T. (1990). The disorders of personality. In L. A. Pervin (Ed.), Handbook of personality: Theory and research (pp. 339-370). The Guilford Press.

Spongberg, V. H. (2010). The philosophy of Erik Gustaf Geijer. Kessinger Publishing, LLC.

Vater, A., Moritz, S., & Roepke, S. (2018). Does a narcissism epidemic exist in modern western societies? Comparing narcissism and self-esteem in East and West Germany. PloS one, 13, e0188287. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0188287

Para citar este artigo:

PECEGUINA, Inês. Me, myself and I: da pessoa epílogo à pessoa prólogo – parte III. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-46/me-myself-and-i-parte-3/, número 46, 2023

Numa tentativa para compensar tanto a falta de presença e disponibilidade psicológica dos cuidadores, enquanto criança, quer pela expectativa constante de que as suas necessidade nunca serão atendidas. Porque nunca, ou raramente foram.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.