Biografia dos Dias sem Princípio
Coluna de Inês Peceguina
4 MIN DE LEITURA | Revista 45
Me, myself and I: da pessoa-epílogo à pessoa-prólogo
[parte I] Parte II
Precisamos de pertencer. Talvez este contorcionismo todo tenha nessa necessidade de fazer parte a sua origem. Se o coletivo humano que nos rodeia, segue um determinado código de conduta, admitindo certos comportamentos e emoções, e outros não, então a pertença ao grupo exige a sublimação. No sentido mais psicológico do conceito, de transformação de uma coisa que não é aceite, noutra que é. A pertença a um grupo (ou vários) é essencial à sobrevivência humana. Não é um detalhe. Nem uma fase. Mesmo com níveis de envolvimento diferentes. A pertença aos lugares, que se vão também transformando e por isso são mais lugares internos do que externos. Sabemos (quase) todos, que o isolamento social é passadeira vermelha da doença mental. E que o mental é corpo. E que uma mente doente é um corpo doente. O que não é sempre verdadeiro ao contrário.
Precisamos de autonomia relativamente à comunidade e aos grupos de que fazemos parte. Aos núcleos de que fazemos parte.
Duelo de contradições.
Erik Geijer, poeta, filósofo, escritor e outras coisas (Spongberg, 2010), considera que este movimento – comunidade e autonomia – acaba por fortalecer cada um dos elementos: quanto mais os indivíduos procuram desapegar-se, mais intensamente sentem a natureza prejudicial dessa necessidade que, mesmo em condições de ódio recíproco, os obriga a forjar laços de dependência mútua cada vez mais estreitos.
Este impulso ou necessidade que gera o impulso, mais uma vez, pode ser pensado considerando o contexto hipotético que permitiu a nossa sobrevivência enquanto espécie. Alguém um dia nos manteve minimamente protegidos para que não morrêssemos de fome e de frio. Alguém um dia nos manteve minimamente protegidos para que não morrêssemos de fome afetiva e frio interno. A urgência da sobrevivência, quer se trate de uma erva daninha ou de um animal, incluíndo animal-humano, é capaz de feitos impossíveis para se manter por aqui.
E então, nesse jogo permanente entre o eu e o(s) outros(s), o dentro e o fora, o com e o sem, o sozinho, mas não em solidão, uma quantidade enorme de pessoas, as pessoas-epílogo, sobretudo as mais frágeis nos papéis sociais – mulheres, crianças, minorias sociais, linguísticas, e todas as outras que não são apenas minorias, mas quase sempre consideradas menores, no sentido de inferiores, esses, costumam deixar passar, ficar no lugar pior da mesa, da sala, dar o cu e dois tostões para que alguém se lembre de as/os ver, mas ver mesmo, e reconheça o laborioso silêncio angular que todos os dias põe em marcha o resto do mundo que as rodeia. São sempre as últimas. Porque nunca, nunca, puderam ser as primeiras.
É um extremo. No espectro do amor próprio.Num dos lados, a pessoa-epílogo.No outro, a pessoa-prólogo.
A pessoa prólogo é mais recente aqui no ecossistema onde habito. É maioritariamente jovem. Em idade, sim. Foi educada por um contexto que lhe fez saber desde cedo que as suas necessidades são muito importantes. São as mais importantes. O seu prato tem todas as coisas especiais que os outros à sua volta, cordialmente, retiram dos seus prato e lhe ofereceram. A pessoa-prólogo não teve oportunidade para chorar grande coisa em bebé. Porque não teve tempo de espera e frustração. Aprendeu precocemente a distração. O entretenimento. Envolvida numa série de estímulos sensoriais, cognitivos, luminosos, coloridos, acústicos, melodias e sabores especialmente desenvolvidos para estimular o desenvolvimento neuronal. White noise.
Experimentou pouco o desconforto. Porque, felizmente (?), o seu habitat pode proporcionar-lhe ferramentas apropriadas ao seu estado de desenvolvimento. Que por ser rápido, sobretudo durante os primeiros 3 anos, é exigente, e precisa de mais, e mais, e mais. Barriga de moço, não tem osso. E o cérebro, também não. Sendo que é aqui, no conjunto todo, que a pessoa, a sua essência, a sua natureza, se vai desenvolvendo.
A pessoa-prólogo já verificou que as rotinas dos pais e da sociedade em geral, a colocam no centro da trama. Escolhem-se os alimentos, os roteiros, as localizações das casas, os filmes que se vão ver no cinema, os horários para estar com amigos que, caso os adultos sejam portadores de crianças-prólogo (e atenção que pais-prólogo também são muito bons a educar filhos-prólogo, e não apenas os pais-epílogo), os amigos, escrevia, serão provavelmente amigos novos, pais de crianças-prólogo dentro da mesma faixa etária. O que, na prática, não são exatamente amigos. Primeiro, porque, no paradigma atual, os pais passaram a ser pais para todas as pessoas, e só as crianças é que têm nome. Segundo, porque os interesses e questões que são comuns e que são objecto permanente de dissecação em toda a comunicação entre estes amigos-pais-e-mães, são as questões das crianças. Fala-se da gravidez, depois do parto, das diferenças entre os irmãos, as conquistas, os sustos, tudo, tudo, tudo, sobre a Mariana Soares, a Joana Campos, a Beatriz Gouveia e Costa, o seu irmão Gonçalo Gouveia e Costa, os gémeos Francisco Maria e Marcelo António Prieto, todos com nomes próprios e nomes de família. E depois os pais falam das coisas que os pais fazem, que são comuns a todos os pais. Mas não falam de cada um. Porque perderam entretanto nos seus nomes. Todos. A mim, este fenómeno parece-me um bom indicador da metamorfose subtil que está já bem instalada em muitos agregados familiares.
E assim vão crescendo.
Recentemente tive oportunidade de ouvir a resposta à pergunta: Quem é, ou quem são para ti, a(s) pessoa(s) mais importantes no mundo? Responderam aproximadamente 20 pessoas entre os 19 e os 27 anos. Dois, referiram a avó. Um, os pais e o irmão. Outra disse a minha família e os meus amigos. Outra ainda disse: a minha tia, foi ela quem me criou. As restantes 15, responderam:
– Eu.
Ponto final.
Observei com curiosidade este acontecimento. Nunca sequer tinha pensado, perante uma pergunta destas, que eu pudesse ser resposta. A pergunta, só a pergunta, ao ser descodificada pelas várias regiões do meu cérebro que são responsáveis pela tarefa complexa da compreensão das palavras e dos significados, leva-me de imediato para fora. Sim, eu também sou importante no meu mundo, claro, pensei, numa tentativa de justificar para mim própria que essa possibilidade nunca me tivesse ocorrido. Penso que não me imagino separada dos outros que são os mais importantes da minha vida. Ao dizê-los, também me digo. Mas o protagonismo desta resposta, 15 em 20, o que representa uns bons 75 % dos inquiridos, na minha perspectiva, é interessante, e pode bem ser uma mudança conceptual.
Ou um sinal de uma certa solidão? Ou ainda, uma evidência duma tendência crescente para o Narcisismo? Sendo que solidão e narcisismo não estão aleatoriamente próximos. Ao que parece, muitas vezes, onde vive um, vive o outro.
De acordo com o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, American Psychiatric Association, 2022), o narcisismo é uma desordem da personalidade, que compreende uma forma persistente de grandiosidade, um desejo contínuo de admiração, e ausência de empatia (ou muito pouco).
O diagnóstico clínico, exige que se verifiquem pelo menos 5 dos seguintes parâmetros:
- um sentido grandioso de auto-importância;
- preocupação com fantasias de sucesso ilimitado, poder, brilho, beleza ou amor ideal;
- a crença de ser “especial” e únicos e que só pode ser compreendido por, associar-se a outras pessoas (ou instituições) também especiais ou de elevado estatuto;
- necessidade de admiração excessiva;
- um sentido de direito (expectativas irracionais de tratamento especialmente favorável ou conformidade automática com suas expectativas);
- exploração das relações interpessoais (tirar partido dos outros para alcançar seus próprios fins);
- falta de empatia (relutância em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades dos outros);
- inveja frequente dos outros ou crença de que os outros têm inveja deles;
- comportamentos ou atitudes arrogantes e de superioridade.
O traço mais evidente, contudo, parece ser o foco absoluto nas suas próprias necessidades, e a necessidade de serem admirados. Por causa desse egocentrismo, e como demonstram alguns estudos, estas pessoas têm dificuldade em desenvolver relações afetuosas, cuidadoras e cuidadosas, que perdurem no tempo (e.g., Campbell & Foster, 2002).
Para citar este artigo:
PECEGUINA, Inês. Me, myself and I: da pessoa epílogo à pessoa prólogo – parte II. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/me-myself-and-i-parte-2/, número 45, 2023
Recentemente tive oportunidade de ouvir a resposta à pergunta: Quem é, ou quem são para ti, a(s) pessoa(s) mais importantes no mundo? Responderam aproximadamente 20 pessoas entre os 19 e os 27 anos. Dois, referiram a avó. Um, os pais e o irmão. Outra disse a minha família e os meus amigos. Outra ainda disse: a minha tia, foi ela quem me criou. As restantes 15, responderam:
– Eu.
Inês Peceguina
PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação
Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.