O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 45

Sagrada Comunhão

 

Hoje fiz amor com a água. Vi-a ao longe vestida de lagoa, linda linda. Desejei-a muito, na sua beleza convidativa ao prazer. Aproximei-me devagar, pé ante pé, consciente de que me observava atenta no seu delicado merujar. Fomo-nos cortejando sem pressas na silenciosa e intensa comunicação da sedução. Vejo-a então na sua magnitude e profundidade multidimensional. Que bela é! Tão antiga. Tantas as vozes e memórias que a habitam em gotas mais preciosas do que diamantes.

O meu coração bate forte num misto de reverência, curiosidade e expectativa. Os pés embatem numa pedra em forma de coração e o meu útero pulsa. Marota… Esta água sabe enfeitiçar uma mulher.
Sinto o apelo irresistível de a tocar, de a ter colada ao meu corpo, de saber a sua textura, o seu sabor na boca. De sentir como me beija a pele, de me misturar nela e perder-me na sua fluidez.

A excitação cresce na antecipação do primeiro toque, do primeiro beijo. Aproximo os dedos dos pés e deixo que ela me conheça. Um arrepio corre-me da coluna à alma e devagar, muito devagar, vamo-nos descobrindo centímetro a centímetro. A cada avanço mergulho em mais do que sensações, numa dança feita veneração.

Sinto-me privilegiada por penetrar nela, ela penetrando o meu corpo nu como quem lê um almanaque. Abandono-me aos movimentos gentis da dança. A percepção do campo de Vida aquática que me rodeia, com tantos seres e micro universos emociona- me e peço desculpa pela intrusão na casa. Será que sou bem vinda? O consentimento é lei no sexo sagrado e eu não quero blasfemar a alquimia.

A água que me faz gente canta em uníssono com a água lagoa e eu sou a orquestra conduzida pela batuta do Grande Mistério.

Rendo-me. Toda eu sou vozes e murmúrios reverberando as mil presenças que ali já se banharam. Dissolvo-me em Sagrada Comunhão. Algures um ponto no meu ventre começa a latejar um ritmo grave e compassado que vai ganhando potência, cavalgando milímetros íntimos, abrindo espaços fronteira e detonando montanhas.

Ofereço-me em oração, que o meu prazer seja uma oferenda votiva de absoluta gratidão à Mãe Água, que Ela seja abundante, livre e pura.
Entro no vórtice, a respiração guia-me como uma estrela cadente, mais e mais e mais e mais até que ecludo em plenilúnio. Cheia. Tudo e Nada.

Flutuo num espaço de teias mágicas onde olhos, símbolos e cores me cercam e atravessam. Apreendo o que posso na minha infinita pequenez e curto entendimento de tanta revelação. Choro emocionada e observo fascinada como as minhas lágrimas criam relação com as gotas dela, a água lagoa, uma nova história a ser contada.

Vagueio um pouco mais neste campo de percepção antes de regressar totalmente a mim, voltando a terra purificada e consagrada por este baptismo.

Das muitas práticas extáticas para visão, entendimento e expansão de consciência que existem, as que são paridas no sexo são as que eu mais respeito, reverencio e cultuo. Sei dos estados de ligação umbilical que se criam em campos além de humanos nos momentos de desespero, magia ou êxtase. Descodificar os sinais, mapear linguagem e criar vocabulário tem sido a minha investigação principal dos últimos anos.

Os estados de rendição são absolutamente preciosos. Esses mergulhos profundos a dimensões abissais onde descobrimos criaturas inacreditáveis, cheias de resiliência, dons e capacidades muito específicas, a sua própria forma de luz e visão também. E não estou a falar só dos oceanos.

Nesta estação de calor e fogo, rezo para que seja um Verão sábio, azul de entendimento, que possamos cuidar e respeitar a Água deste nosso mundo e todos os seres visíveis e invisíveis que a habitam.

Que possamos também honrar as nossas mais íntimas e profundas águas, limpando cuidadosamente o que dentro tenhamos estagnado, contaminado ou barricado.
Que nos atrevamos a conhecer as nossas fontes, rios, mares, lagoas e pântanos interiores, entender onde levamos amantes a beber e o quê.

Cuidar das nossas águas. Todas. Dentro e fora de nós. E agora vou ali fazer amor com o Sol.

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Sagrada Comunhão. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/sagrada-comunhao/, número 45, 2023

Abandono-me aos movimentos gentis da dança. A percepção do campo de Vida aquática que me rodeia, com tantos seres e micro universos emociona- me e peço desculpa pela intrusão na casa. Será que sou bem vinda? O consentimento é lei no sexo sagrado e eu não quero blasfemar a alquimia.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.