Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

2 MIN DE LEITURA | Revista 45

Ideologia, consciência e desejo: o que promove mudanças?

 

A cada dia buscamos nos mobilizar diante da crise socioambiental que se agiganta e das formas de vida que foram apartadas da natureza. Concomitantemente, debruçamo-nos, de formas diferentes, sobre o humano e o sistema de vida que desconecta, sendo esta condição uma expressão do coração da crise. Educadores, escritores, artistas, terapeutas, pesquisadores e cidadãos do mundo estamos em busca de instrumentos que contribuam para com a expansão de consciência do humano e com a regeneração mínima dos sistemas vivos.
Trabalhamos sobre algumas competências nesse processo, sobretudo duas: a político-ideológica e a da educação. Na primeira, acreditamos que processos de formação crítica possam contribuir para que as pessoas percebam a serviço de que mundo estão – já que existem projetos de mundo diferentes e até antagônicos em disputa no que chamamos de mundo. Na segunda, insistimos em um processo educativo, centenário, de transmissão de conhecimentos e informações, que tem o ato de conscientizar.
Mas na década de 80, o filósofo francês, psicanalista, criador da esquizoanálise e da ecosofia, Félix Guattari lança um livro chamado “Micropolitica. Cartografias do Desejo”, com a filósofa e psicanalista Suely Rolnik, que nos ajuda a pensar nos percursos e na dimensão do desejo – um elemento central do processo ideológico, quase sempre ignorado. O campo do desejo e as políticas do cotidiano complexificam e relativizam a preponderância dos sistemas ideológicos e da formação da consciência frente aos processos de transformação da sociedade. Sua abordagem é incômoda e indigesta porque revela dimensões, nos processos de constituição da subjetividade, que não estão dados em uma primeira instância.
Como ambos dirão, um sistema, ao investir ideologicamente nos coletivos, o faz através de processos de modelização e não apenas de representação de ideias. Por isso, uma economia capitalista supõe uma economia subjetiva correspondente, ao nível dos desejos e das formações do insconsciente. E entre a ideologia, a consciência e os desejos, somos sempre atravessados pelos últimos. Se o que nos move é um celular de última geração, nossa consciência na defesa das usinas hidrelétricas não está 100% disponível.
Daí que os processos e projetos macropolíticos só ganham consistência se tiverem um correspondente micropolítico, no cotidiano, que impliquem na formação de novas atitudes, novas sensibilidades e novos fazeres.
A dimensão micropolítica é o locus de enraizamento e de ancoramentos dos processos emancipatórios que perseguimos, entre a junção das demandas “molares” e “moleculares”, entre os fluxos que perpassam os níveis mais amplos da sociedade e os níveis que perpassam o cotidiano, as microrrelações, o mais íntimo do ser humano. Para Guattari, as lutas sociais são molares e moleculares a um só tempo. E a micropolítica é uma perspectiva viva e lúcida que observa as pegadas das formações do inconsciente no campo social.

A grande questão posta é a compreensão de que só é possível haver mudança e revolução, de fato, se o desejo – que normalmente está capturado pelo sistema dominante -, libertar-se e mobilizar as formações do inconsciente, investindo no ideário revolucionário.

Uma concepção política puritana é aquela que considera a ideologia como um sistema de ideias desconectadas da dimensão da vida e dos desejos, da forma como se vive, se ama, se relaciona, se produz, se consome. Uma concepção educacional puritana é aquela que considera que a razão está livre do campo dos afetos e das emoções, e que nossas intenções macropolíticas dão conta de suprimir os gritos micropolíticos e o desejo que se dispersa em linhas de fuga. 
Talvez por isso estejamos sempre desbravando mundos macropolíticos, mas reproduzindo lógicas micropolíticas que desarticulam a potência das primeiras. É preciso acertar o passo e o sopro, alinhar o que se pensa, com o que se diz, o que se pratica, sente, deseja e projeta. A vida é essa totalidade que nos conclama ao trabalho de si e sobre si.

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Ideologia, consciência e desejo: o que promove mudanças? Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/ideologia-consciencia-e-desejo-o-que-promove-mudancas/, número 45, 2023

A grande questão posta é a compreensão de que só é possível haver mudança e revolução, de fato, se o desejo – que normalmente está capturado pelo sistema dominante -, libertar-se e mobilizar as formações do inconsciente, investindo no ideário revolucionário.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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