artigo de Daniela Kato

Dançando com o Vento

6 MIN DE LEITURA | Revista 45

Neste final de Maio, o céu está carregado e o ar húmido – a estação das chuvas aproxima-se da aldeia a passos largos e durante um mês inteiro a água cairá sem cessar. Estes são os últimos dias secos que temos para completar a tarefa à nossa frente, mas nem mesmo este sentido de urgência quebra o encanto do contato visceral com a terra.

Uma anciã corcovada, vestida numa bata florida, lança-nos um olhar perplexo ao passar na sua scooter elétrica. O seu corpo frágil e contorcido carrega consigo a memória das práticas antigas do cultivo irrigado de arroz, com todos os seus fardos e sacrifícios. Sim, ela tem razão em perguntar-se por que é que alguém, no seu perfeito juízo, quereria dedicar-se a tão árduo labor manual nesta era de máquinas e supermercados. No Japão rural de hoje, o transplantio manual dos rebentos de arroz há muito que foi substituído por transplantadoras mecânicas, pelo que nesta altura do ano o processo está praticamente concluído e a maior parte dos arrozais desertos.

Apesar do seu ar de abandono debaixo do céu cinzento, a sucessão ondulada de arrozais plantados em terraços, com as suas fileiras perfeitamente simétricas de rebentos verdes iridescentes, forma uma paisagem pitoresca. Tudo é ordem e beleza, sem vestígios desordenados de camponesas corcovadas, de estrume, de suor, de lama.

Suor e lama abundam no arrozal onde viemos ajudar uns amigos na vizinhança. Mas à medida que a tarde se desenrola, uma força imprevisível começa a afetar a energia deste nosso grupo entusiasta de recém-chegados à aldeia. O vento já não é mais o seco e gélido Yatsugatake-oroshi que nos meses de inverno sopra feroz desde o Mar do Japão, descendo o sopé sul do Monte Yatsugatake e atravessando a Bacia de Kofu até encontrar a nossa pequena aldeia, situada na confluência exacta desta trajetória. Ainda assim, é um vento sudeste áspero e uivante, varrendo para longe os rebentos de arroz, desalinhando as varas de bambu que usamos para manter as fileiras alinhadas, interrompendo a conversa, até então animada, e os cantares.

A harmonia cuidadosamente construída começa a esvair-se e uma estranha fadiga desce sobre nós.

Num dos cantos do arrozal, duas crianças pequenas que haviam passado a manhã a brincar com caranguejos e girinos parecem suspensas num transe, enterradas até aos joelhos na lama. Mal conseguindo ter-se de pé, elas mantêm, no entanto, as cabeças erguidas, como que à escuta de algo, os olhos fixos na floresta de pinheiros vermelhos que formam uma cortina quebra-vento na distância.

Será isto obra de Kaze-no-Matasaburo, um dos vários espíritos do vento no folclore japonês? Há quase um século, Kenji Miyazawa, o brilhante fantasista da literatura infantil, reinventou a personagem num conto que se desenrola na encosta de uma serra não muito longe daqui. No primeiro dia de escola após as férias de Verão, as crianças regressam, cheias de entusiasmo e energia, mas encontram na sala de aula um novo aluno que as inquieta. Um vento sopra feroz lá fora nesse dia, e algumas das crianças começam a suspeitar que o rapaz, com a sua roupa bizarra e o cabelo de um vermelho flamejante, pode bem ser o lendário espírito Matasaburo.

Para além da presença intrigante do vento e das suas vigorosas interações com a paisagem, pouca ou nenhuma ação convencional há a registar neste conto enganadoramente simples. Tão depressa quanto chegou, o rapaz desaparece. Afinal, ele só tinha vindo frequentar a escola na serra por uns dias para acompanhar o pai, um engenheiro de minas em busca de molibdénio – um metal utilizado na manufatura de blindagens e artilharia pesada durante a Guerra – para extração.

Porém, esta personificação do vento contém ensinamentos valiosos sobre o lugar ambivalente que este ocupa no imaginário das comunidades rurais no Japão. Em contraste com a água, uma força valorizada pelas suas qualidades purificadoras e também mais facilmente aproveitável pela legibilidade dos seus caminhos e direcções, o vento é visto como um mensageiro críptico e inquietante de terras distantes. Uma ameaça invisível que precisa ser dominada, para que não nos domine. É sabido que em certas regiões varridas pelo vento, especialmente em passagens perigosas entre montanhas, os viajantes costumavam pendurar uma foice aguçada para criar uma barreira mágica contra o vento.

Regressando ao conto de Miyazawa, leio algo de ainda mais antigo e pré-agrário nas suas múltiplas camadas de sentido. Talvez algo de mítico mesmo, enraizado na cultura Jomon da sua terra natal? Nessa cultura neolítica centrada na floresta, o vento era visto como uma força menos hostil, que partilhava dos poderes purificadores e revigorantes da água. Vindo de terras longínquas, o vento ancestral que sopra através da história de Matasaburo toca e transfigura a paisagem do quotidiano, aguçando a sensibilidade auditiva dos seus habitantes mais jovens, conectando as correntes de ar que sopram lá fora com as que sopram dentro dos seus pequenos corpos.

Sinto estas correntes mitopoéticas atravessando os corpos das crianças na beira do arrozal dos nossos amigos. Mas sinto algo mais aqui – algo igualmente em movimento e transformação. Uma dança japonesa a um tempo antiga e moderna, estranha e familiar, imersa na lama e nas alterações atmosféricas, nos sofrimentos transpessoais do corpo sentido e moldado como uma força da natureza. Uma dança visceral que dá corpo à história coletiva da terra.

O que sinto aqui é a presença do butô, a arte baseada no improviso e na mutação incessante, criada pelos dançarinos-coreógrafos japoneses Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno há mais de quarenta anos.

Os fios que ligam o butô ao vento foram cerzidos pela primeira vez durante uma colaboração única entre Hijikata e o fotógrafo Eikoh Hosoe no final dos anos 60. O projeto do fotolivro recebeu o título de Kamaitachi, em homenagem ao espírito yokai do folclore japonês. A kamaitachi é uma espécie de doninha sobrenatural, temida por cavalgar invisível os ferozes ventos da montanha e por infligir cortes nas pernas dos caminhantes com as suas garras em forma de foice. Para o fotolivro, Hosoe capturou momentos explosivos de uma série de performances improvisadas por Hijikata em vários lugares da sua aldeia natal em Akita, no norte do Japão. Ao longo de semanas a fio, Hijikata, possuído pela kamaitachi, pregou partidas aos aldeões, zangou-se, riu, brincou e bebeu com eles; rolou na lama, saltou e correu desenfreado como o vento pelos arrozais, muitas vezes perante um público cativo de crianças abismadas.

Após décadas de experimentação intrépida, no inverno de 1985 (um ano antes da sua morte), Hijikata articulou pela primeira vez as raízes agrárias do seu ankoku butô – a dança das trevas – numa palestra memorável intitulada “Kaze Daruma” (O Daruma do Vento). O texto evoca memórias lacerantes de crianças com pouco mais de três anos, que Hijikata descreve ter visto amarradas a postes e abandonadas, enquanto os pais trabalhavam, nas casas de lavoura – “os seus corpos não lhes pertenciam. . . . O que aprendi com essas crianças moldou muito o meu próprio corpo”. Mais: bebés deixados dentro de izume, cestas feitas de palha de arroz e usadas para manter quentes as refeições dos pais que trabalhavam nos arrozais o dia inteiro, “num labor pesado, mas tão pesado que excede qualquer descrição. Esta gente trabalhava tão acorcovada que não podia nunca olhar para trás na direção dos filhos”.

As crianças, amarradas e incapazes de se moverem, “berravam sem parar” e, “debaixo de um céu húmido, um vento voraz tragava os seus gritos”. Incapazes de se fazerem ouvir, elas aprendiam a engolir as próprias lágrimas, “colhendo e devorando as trevas”. Ao entardecer, as crianças eram finalmente retiradas das cestas. As suas pernas estavam agora tão dormentes por terem estado dobradas o dia inteiro que já não conseguiam esticá-las nem levantar-se. Hijikata lembra-nos que o butô nasceu daqui, desta escuridão devorada e destes corpos corcovados e vulneráveis ​​que não encontram forças para se levantarem.

 

Entretanto, no arrozal dos nossos amigos o vento sudeste deu lugar a uma brisa suave que levantou o ânimo dos transplantadores de fim de semana. A tarefa foi levada a bom termo ao final da tarde, e é como se este nosso esforço e o espírito de comunidade gerado tivessem revertido o declínio galopante do cultivo de arroz por estas partes. As duas crianças pequenas são levantadas da lama e as suas pernas cuidadosamente limpas pelas mães; um casal de caranguejos é colocado em cima de uma almofada de lama dentro de duas pequenas gaiolas de plástico e depositado na caixa aberta de um mini camião, com as crianças.

De regresso a casa, porém, à medida que subo a colina em direção ao canto mais despovoado da aldeia onde vivo, esta sensação temporária de ordem dissolve-se. Aqui, arrozais abandonados há muito se tornaram irreversivelmente porosos para o cultivo; florestas negligenciadas não servem mais o seu propósito de quebra-vento – a paisagem vai retornando aos seus contornos ancestrais.

Aqui, o vento sopra implacavelmente desimpedido, tornando o nosso encontro inevitável, ainda que sempre imprevisível.

Nesta paisagem primordial, vou aprendendo lentamente a dar uma forma dançante a este encontro. Uma dança que entretece o movimento visceral e incerto do corpo frágil em mutação com a estabilidade da vida quotidiana imersa nos elementos: água, terra, fogo, metal, madeira.

Uma dança a que já nem sequer procuro dar um nome, porque ela se tornou a própria vida – este lugar onde encontrei uma casa, ao vento.

Para citar este artigo:

KATO, Daniela. Dançando com o Vento. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/dancando-com-o-vento/, número 45, 2023

Em contraste com a água, uma força valorizada pelas suas qualidades purificadoras e também mais facilmente aproveitável pela legibilidade dos seus caminhos e direcções, o vento é visto como um mensageiro críptico e inquietante de terras distantes. Uma ameaça invisível que precisa ser dominada, para que não nos domine. É sabido que em certas regiões varridas pelo vento, especialmente em passagens perigosas entre montanhas, os viajantes costumavam pendurar uma foice aguçada para criar uma barreira mágica contra o vento.

Daniela Kato

Daniela Kato

Escritora e Investigadora

Sou uma escritora, investigadora e contadora de histórias natural do Porto e radicada no Japão desde 2007. Atualmente estou a estabelecer a minha prática privada de ecoterapia e a trabalhar em projetos criativos em colaboração com a comunidade local, entretecendo práticas artesanais e de coleta de plantas silvestres com o folclore e a paisagem locais, numa pequena aldeia na região de Yamanashi. Sou também professora convidada de ecoterapia na Tariki Trust, Reino Unido.
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