O Canto do Verbo

Coluna de Ana Alpande

3 MIN DE LEITURA | Revista 45

Carta à minha Neta

 

Querida neta, tive um lindo sonho lúcido contigo, íamos de mãos dadas a percorrer a rua da Anta até chegar ao meu penedo favorito, de onde vemos o Seia correr, galgando os caminhos e as pontes que herdámos dos romanos, esculpindo pedra e terra ao longo de milhares de anos.

A paisagem que me mostras com entusiasmo tem os mesmos ossos e leitos, mas é radicalmente diferente daquela que vi hoje de manhã quando passeei com a Neve, a minha íntima companheira de quatro patas. Haverás de ouvir muitas histórias sobre ela, prometo…

A paisagem no sonho é ela mesma um sonho, o rio adorna-se de choupos, faias, bétulas, salgueiros e gramas variadas, carvalhos, teixos, freixos e castanheiros. Há vida que pulsa por todo o lado e satura o ar, até o granito parece ter aberto mais seus poros para receber a absolvição deste verde, característico de uma floresta variada e saudável.

Choro de emoção e incredulidade, apertas-me a mão com força, dou-me conta da pouca esperança que tenho no futuro.

Quando estou sozinha, o amanhã que vejo é um onde a água desaparece dos rios e o deserto lambe a sola dos meus pés secos e gretados.
Mas aqui estás tu, por entre constelações, filha da Lua Nova, sorrindo-me por entre as estrelas, enquanto oriento o meu olhar para Cassiopeia. Sussurras aos meus ouvidos a canção da água pura e cristalina, que corre por entre os guardiões de granito, por onde saltam as trutas e se escondem as lontras, estremecendo de antecipação pelo ansiado banquete. A melodia onde a vida pulsante e generosa atordoa os meus sentidos, desgastados por décadas de crimes graves contra esta terra que me cuida e guarda.

De mansinho sussurras:
– Não deixes de sonhar a terra livre e insubmissa. – logo o meu corpo relaxa e afunda-se na rede, respirando com as fibras do algodão.
Percebo de imediato o porquê deste sonho: se não sonhar regularmente com ambas a percorrermos o familiar caminho da pedra, da água e do sobreiro, o mundo não fruirá.

Este exercício impossível da imaginação que me pedes é o activismo mais radical de todos. Preciso tanto da tua visita quanto precisas do meu sonho; a truta livre, as águas puras e abundantes, o urso pardo e os veados precisam da minha obstinada imaginação tanto quanto eu preciso da deles.

Teixos grandiosos filtram a luz das estrelas que se revela através dos teus olhos, não sei quando nascerás, nem de quem serás filha, se te receberei nos meus braços de amor, como recebi o meu filho e os meus sobrinhos, ou se serás neta por afinidade entre tantas afinidades que elastificam o tecido do meu coração, rompendo as fronteiras do sangue.
Não sei, e não me importa. Sei que sou tanto tua quanto és minha. Sem ti não tenho presente, sem mim não tens futuro.

Aqui fico a sonhar acordada, com o dia em que de mãos dadas subiremos a rua da Anta e em vez de mimosas e eucaliptos seremos recebidas por teixos e carvalhos, os cervos guiarão os nossos passos à distância com a atenção de irmãos mais velhos que vigiam sem intervir. A água jorrará da rocha e os peixes farão piruetas no ar, estonteando as águias e os milhafres. O vale será fértil, exuberante, teimoso e resiliente como sempre soube ser, muito antes dos humanos terem traçado linhas em papéis, clamando a propriedade daquilo que só pode pertencer a si mesmo, o mistério da morte e vida que pulsa e vibra debaixo dos nossos pés.

Que sonhemos então o mesmo sonho: eu, tu, as trutas, a pedra, a água, e as águias, que os olhos da nossa imaginação sejam os poros através dos quais a Alma do Mundo respira possibilidade e improbabilidade.

Querida neta, que eu saiba ser aquilo que o futuro precisa que eu seja, para que o sonho da vida siga sendo sonhado, para lá dos confins das leis conhecidas, da redutora e probabilista realidade linear.

Para citar este artigo:

ALPANDE, Ana. Carta à minha neta. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/carta-a-minha-neta/, número 45, 2023

Aqui fico a sonhar acordada, com o dia em que de mãos dadas subiremos a rua da Anta e em vez de mimosas e eucaliptos seremos recebidas por teixos e carvalhos, os cervos guiarão os nossos passos à distância com a atenção de irmãos mais velhos que vigiam sem intervir. A água jorrará da rocha e os peixes farão piruetas no ar, estonteando as águias e os milhafres. O vale será fértil, exuberante, teimoso e resiliente como sempre soube ser, muito antes dos humanos terem traçado linhas em papéis, clamando a propriedade daquilo que só pode pertencer a si mesmo, o mistério da morte e vida que pulsa e vibra debaixo dos nossos pés.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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