Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

4 MIN DE LEITURA | Revista 45

Arco-íris no Deserto

As violências e belezas que coexistem na complexidade, os gritos e sussurros que é hora de escutar.

 

Um dia visitei um deserto que me ensinou sobre existir na complexidade.
Quando cheguei ao Mojave estava a chover intensamente a sul, e um arco-íris duplo adornava metade do céu. A meros metros a norte, o céu estava azul sem rastro de nuvens.
Eu, que cresci longe de desertos, não esperava encontrar esta imagem. Tinha grandes distorções ideológicas deste bioma. Porque dele cresci longe, aprendi-o por comparação teórica: as florestas e oceanos a borbulhar de vida, os desertos: inférteis, desolados, eternamente secos, pobres. Reducionismos que só foram desafiados aquando do encontro na vida real. A surpresa do inesperado é sempre uma excelente chamada de atenção aos meus sentidos de bióloga, que sabem já ser regras a excepção e o engano nomenclatural.
Ficou claro então que todas as definições teriam de ficar no carro e que para conhecer o deserto teria de o ouvir, sentir com o corpo todo. E no deserto, há um silêncio muito profundo e particular que nunca conheci noutro bioma, mas desengane-se quem ache que nada há a escutar.
A zona do Mojave que visitei tem como habitantes humanos nativos 15 comunidades tribais norte-americanas cujos ancestrais habitavam aquela terra desde há 12’000 anos, mas não mais.
O nome do deserto carrega, pois, em si as histórias e estórias da água e do povo que o habitava: Aha Macave (Mojave), o povo que vive ao longo das águas, cuja história de criação se entrelaça intimamente com a criação do grande rio Colorado.
Em finais de 1800, a violência imperialista contra os povos nativos do Mojave atingira já níveis atrozes. Terras militarizadas, invadidas e superexploradas, confinando os nativos a reservas estabelecidas por governos coloniais, onde sucede o epistemicídio das línguas e culturas indígenas. Menos de 2000 descendentes das tribos sobreviveram até hoje (1). Quanto à fauna e flora que permanecem, enfrentam ameaças de projectos energéticos e agrícolas insustentáveis e alterações climáticas. No último século a precipitação no Mojave decresceu já 20% nalgumas áreas (2).
Olhava eu, então, para um fenómeno que antes de o saber abundante, já se rarifica: a chuva que sustenta a vida naquele deserto. A água que é história íntima do seu povo nativo e que alimenta as suas Yucca anciãs e orna os céus com arco-íris. E o que se sente nesses momentos é uma complexidade de fascínio, gratidão, tristeza, revolta, exaustão e esperança. Tudo simultaneamente.
Ouvi então sussurrar aos lagartos daquelas rochas: “são as violências e belezas paradoxais da existência que urgem!”
Parece ser nesta complexidade, neste paradoxo de céus azuis e também cinzentos; arco-íris, mas também nuvens escuras, arco-íris em desertos; que temos que aprender a viver, todos os dias. E parece, de imediato, faltar-nos a stamina para tanto desconforto.
O deserto é um velho amigo da redefinição de desconforto. Lembra-nos impetuosamente da gratidão por água fresca e uma manta à noite. Faz-nos questionar o que é de facto necessário carregar às costas para a caminhada. Cada gota suada, um tesouro. Cada perda de atenção, potencial morte.
Atualmente, cerca de 2 biliões de humanos partilham com outras espécies a vivência em zonas áridas vulneráveis à desertificação (3): a degradação permanente de solos outrora aráveis e férteis para cultivo.
Isto poderá resultar em migrações forçadas de 50 milhões de pessoas até 2030 (3). Esta realidade afecta hoje maioritariamente a África e Ásia, acrescentando às pressões socioecológicas de quem vive já em condição vulnerável e minorizada. A esse custo humano, junta-se a migração forçada e extinção de muitas outras espécies, visto que 75% do solo terrestre se encontra já degradado, com projecções de atingir os 90% em 2050 (3).
A desertificação não fica longe da nossa casa Portuguesa (4-6), que sente já o calor inescapável dos incêndios mais abundantes da Europa e vê o seu solo fértil escapar como areia entre dedos. Na verdade, nenhuma das violências socioecológicas está, ou permanecerá, longe. Todos somos parte de um metabolismo terrestre. Temos casas e pulmões mais intimamente entrelaçados com o todo do que nos lembramos.
Como viver então com corações que temem aridez e mentes que colapsam sob ameaça de instabilidade?
Sussurrou-me o Mojave que parte da subsistência passará por abordar os desertos epistemológicos criados por genocídios e ecocídios, relembrando o essencial.
Quando o imperialismo e tecnocapitalismo eliminam povos, espécies e sabedorias multisensoriais, criatividades diversas, deixam no seu lugar a violência desse vazio. O silêncio das vozes e onomatopeias que sabem viver com e para os lugares que habitavam. Exacerba-se assim a distorção das nossas maneiras modernas de existir, disfarçadas de conforto e conveniência, mas que nos empurram para a extinção, para a desertificação.
Precisamos então de aprender a viver com paradoxos, e com os desconfortos da responsabilidade radical. Escutar os ecos que subsistiram das pessoas, espécies e saberes que resistiram até hoje à aniquilação.

Enquanto que a floresta tropical nos grita “abundância!” o deserto sussurra-nos veemente “apenas o essencial.” Há que saber escutar ambos, há que saber escutar os ritmos naturais do corpo humano e da Terra. Respeitar e conservar a água da chuva para que possamos apagar fogos descontrolados. Viver não só para nós, mas para, e com, as terras e águas que nos sustêm; os que moram longe e podem ter que fugir em breve, os que tendo raízes profundas e asas cortadas, nem fugir podem.
E parece-me que, em uníssono, o ecossistema terráqueo reivindica, em tom de votos: Sente-me. No que nasce, e no que apodrece. Na vida, como na morte. Na dor, como na beleza. Na totalidade, na complexidade. No conforto, como na escassez. Na vida, no paradoxo.

Teremos em nós, humanidade, este amor feroz e incondicional pelo todo?

Seremos capazes, humanidade, desta responsabilidade radical?

Até quando, humanidade, evitaremos a complexidade?

Referências

1 – https://www.nps.gov/moja/learn/historyculture/mojave-tribe.htm
2 – https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/jbi.13645
3 – https://www.nationalgeographic.com/environment/article/desertification
4 – https://www.publico.pt/2023/05/10/azul/noticia/desertificacao-ameaca-significativa-portugal-espanha-2049248
5 – https://www.publico.pt/2023/05/10/azul/noticia/mes-abril-terceiro-seco-desde-1931-2049096
6 – https://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/portugal-tem-61-de-solos-degradados-e-faltam-medidas-de-combate-a-desertificacao

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. Arco-íris no Deserto. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/arco-iris-no-deserto/, número 45, 2023

Quando o imperialismo e tecnocapitalismo eliminam povos, espécies e sabedorias multisensoriais, criatividades diversas, deixam no seu lugar a violência desse vazio. O silêncio das vozes e onomatopeias que sabem viver com e para os lugares que habitavam. Exacerba-se assim a distorção das nossas maneiras modernas de existir, disfarçadas de conforto e conveniência, mas que nos empurram para a extinção, para a desertificação.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com