Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

2  MIN DE LEITURA | Revista 44

Me, myself and I: da pessoa-epílogo à pessoa-prólogo

Parte I [parte II]

 

We live in a world requiring light and Darkness…

partnership and solitude…

sameness and difference…”

Nikki Giovanni, 1979

 

                Dizer não é tocar a pele.

                Uma sensação de tecido.

Por aqui, não.

Este aqui, não.

Isto assim, não.

Assim dói.

Para mim, não.

Agora, não.

                Dizer não é, tantas vezes, dizer sim.

Duelo.

Contradição.

Um não para fora, um sim para dentro? Ou noutra direção qualquer.

Um sim para dentro, não para fora, para o outro. Ou noutra direção qualquer.

                Muitas pessoas em idade adulta, mas que na infância já eram assim, também, não conseguem dizer não. Não ao outro.

                Na fila das coisas que há para fazer, reservam para o epílogo as suas próprias necessidades, desejos, interesses. Sonhos. O que fica no prato para fechar a refeição.

O melhor para fim. Assumindo que o fim acontece exatamente no momento que antecipámos. E que não passa ninguém pelo prato, alguém sempre em prólogo, e lá se vai a recompensa pelo estoicismo.

                Muitas pessoas, pessoas-epílogo, terão provavelmente crescido rodeadas de adultos-epílogo, temerosos da imagem para fora. Curioso. Que hoje seja o momento em que falamos tanto da obsessão em mostrar para fora apenas o que é bom, não, muito bom, socorrendo-nos da tecnologia para suavizar o tempo, omitindo que dentro da casa-corpo, há ruínas. Às vezes, só ruínas. Hoje, pensava, ou antes, quando eu era criança numa aldeia do interior do Alentejo, os adultos preocupados com a imagem. A imagem no sentido estético sim. No sentido de estatuto também. Ou mais ainda. A imagem por causa do estatuto.

O que os outros podem dizer.

O que os outros podem pensar.

Faz de conta que somos felizes. Mesmo quando não somos. (O que, no geral, é uma coisa que vai flutuando ao longo dos dias).

                Véu espesso por cima da fragilidade. Da desarrumação visceral. Palavras de sim-patia. Uma certa ligeireza no cumprimento.

Iniciação à convivência.

Não estamos sozinhos neste lugar. Há (ou havia) vizinhos. Vigilantes (a vizinha Ana ainda está ao serviço).

Iniciação à hipocrisia e ao fingimento.

Está tudo bem, sim. Mesmo quando não está.

Iniciação ao coletivo. Há um bem qualquer nestas mentiras. Um conforto. Confronto não. Não vale a pena estar em todas as arenas. Mas algumas… Teria sido bom que a balança não se atirasse sempre para o mesmo lado.

                Muitas pessoas, algumas ainda crianças, agora mesmo, ou naquele lugar transitório e carregado de possibilidades que é a adolescência e (de) onde se pode treinar essa mestria do não, não fosse o terror do adulto se perceber desnecessário e virar para si o espelho todo, muitas pessoas, escrevia, na transversalidade da existência e do tempo, que é muito menos linear do que afinal eu pensava, cresceram e crescem sob o feitiço de que é preciso carregar a pedra de Sísifo, para cima e para baixo.

                E não é só carregá-la, é carregá-la como se fosse leve. Como se não andassem(os) todos esmagados com as suas (nossas) pedras enormes. Um exercício incrível de representação. Porque só o domínio desta habilidade é que faz com que, lá fora, pareça mesmo leve, e simples, de uma execução que dispensa esforço, dor, pois, afinal, há sempre que esteja pior, de maneiras que siga, um pezinho de cada vez, para não tropeçar.

                Muitas pessoas, por causa dessas pedras aguçadas, arestas incurváveis, imunes à erosão, tanto que se ajeitam para o outro, o outro anónimo, mesmo aquele que antes não era, mas passa a ser porque, afinal, há entre nós esse muro espesso e nem ele me conhece, nem eu a ele, tanto se contorcem, funâmbulos, sem nunca cair, que depois precisam de alguém, fora de si, um amigo, um filho, um sobrinho, um irmão, que lhes lhes vá realizando alguns sonhos. Os sonhos todos de uma vida que lhes vai acontecendo de raspão, não fossem os outros ver, e achar mal.

Não fossem os outros ter dúvidas sobre a sua própria pedra, e libertar-se dela.

 

 

E não é só carregá-la, é carregá-la como se fosse leve. Como se não andassem(os) todos esmagados com as suas (nossas) pedras enormes. Um exercício incrível de representação.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.