Alqimia
Coluna de vasco Daniel4 MIN DE LEITURA | Revista 33
Sakura
A ternura da transitoriedade da vida
“Sakura” é o nome dado à flor de cerejeira no Japão. Designa também, a época em que estas flores brotam das árvores, pelo breve período de uma semana antes de caírem. A Sakura torna-se assim uma metáfora da efemeridade da vida, da impermanência, da beleza, da renovação e da esperança. Sendo um símbolo icónico da cultura nipónica.
Famílias inteiras e grupos de amigos reúnem-se em piqueniques, debaixo das copas das cerejeiras, para celebrar a vida, a ressurreição e o auge da Primavera. É semelhante ao que, em tempos antigos, deu origem à Páscoa, mas sem coelhos, ovos e o Cristo crucificado e ressurecto. Embora a ideia do sacrifício seja aqui igualmente simbolizada, é importante esclarecer o significado original, do sacro-ofício, da confiança e da esperança. O ato de fé de elevada coragem, a partir da qual a vida torna-se possível. Nascer tal como morrer requer uma rutura do que era, abandonando a toca e o mundo conhecido. Porque se uma dose de coragem é requerida, mesmo quando sabemos o que devemos fazer, mais necessária é, quando tudo o que temos é desconhecimento e incerteza. Sem nenhum tipo de suporte ou indicação, avançamos com um passo de fé rumo ao incerto e mergulhando no abismo. A “Jornada do Herói” como bem ilustrou Joseph Campbell nos seus trabalhos, sobre o mito universal.
A vida é o que insurge-se nas brechas de um enorme deserto.
É exatamente isso que as flores de cerejeira realizam. Abandonam o interior conhecido da árvore para encarnarem como flores, por um breve e efémero período de vida. Todo o brotar da vida poderá resumir-se a este mergulho no desconhecido, este abandono da zona de conforto, a paz do descanso, a rotina, o normal e também o estagnado, a morte, o ovo, o casulo, a caverna, a prisão e o seguro. A flor abandona a caverna da morte para mergulhar e encarnar no desconhecido mundo da vida e da matéria, “lutando” pela para permanecer, numa forma, num espaço por um tempo. É um sacro-ofício, um trabalho sagrado, um sacrifício que dá origem a um verdadeiro milagre.
Se por um lado é o mergulho no desconhecido que permite o brotar, por outro são os detalhes que definem a vida que toma existência. É a singularidade da manifestação, que a torna tão especial e significativa, e a manifestação da sakura é algo verdadeiramente singular.
A vida é o que insurge-se nas brechas de um enorme deserto. Na natureza predomina o agreste e a vastidão, o universo é inóspito, a morte é extensa e o caos é predominante. No entanto, contra tudo os oásis surgem, as estrelas brilham no meio do negrume, o som manifesta-se do silêncio, a música insurge-se do ruído, o vazio dá origem à forma e a vida brota das brechas.
Sucede-se pela sua própria natureza, que não é moral nem imoral. Poderia dizer-se simplesmente amoral, da qual o amor é o perfume
Certos incidentes alinham-se de forma co-incidente, gerando centros de ordem. Desse singular acaso dois incidentes seguem o mesmo sentido, nasce um incidente que os transcende numa oitava acima, a serendipidade, o sopro, ou espírito que observa e neste movimento, gera-se a trindade da manifestação. A serendipidade ocorre a partir da fortuita oportunidade que é agarrada no tempo certo. Dando origem a algo único, especial e singular. A vida é a resistência e o alinhamento dos fenómenos no caos do universo. A força contínua que brota alheia às fracas probabilidades.
No daoísmo diz-se que o Dao não tem preferências nem afeição, mas tem bondade. Possuindo naturalmente uma inclinação para o bom e é por isso que ganhamos existência.
É-nos dado não por criação, atribuição ou escolha. Sucede-se pela sua própria natureza, que não é moral nem imoral. Poderia dizer-se simplesmente amoral, da qual o amor é o perfume. Não argumenta porque não compara, porém segue leis simples, leis naturais. A ideia de um complexo guião escrito, através de um criador que arquiteta os destinos, no estúdio do universo, nas quais seríamos os protagonistas como as estrelas de Hollywood, reflete apenas as ilusões da mente racional, enviesada que é em atribuir significados e objetivos, à sua imagem.
A mente racional consegue conceber o limitado, o causal, o efeito, o objetivo, o objeto, o separado, o propositado e tudo o que é aparte. A própria ideia de que o objeto é uma ilusão e algo subjaz a um objetivo, transcende o pensamento racional que se conforta na razão, na separação do moral e imoral, bem e mal, no juízo ou senso.
sakura, aquele instante da primavera em que as flores podem manifestar-se brotando do eterno, e pelo efémero ser, por todo o sempre
Realizado o sacrifício, o sacro-ofício, do pensamento racional, o mesmo poderá ser integrado no pensamento não-dual. Desistindo e mergulhando do próprio para si. O mesmo poderá então ser integrado para lá da dicotomia da dualidade da razão. Termina o pingue-pongue, pousando-se a raquete. E quando toda a ideia assenta, surge o fluxo. O pensamento não-dual que flui no amoral, no Amor, no Bom ou Benevolente. Um amor que é incondicional porque não segue nem reage por condições. É desinteressado, não causal, desapegado e por isso se diz incondicional, ou livre.
O Dao tende para a bondade, e por isso também se diz que é benevolente. Não tem bem nem mal, porém tende a afiliar o bom, por consonância, por consequência natural. Esta será a sua qualidade, a virtude que tudo possibilita misteriosa e milagrosamente. Gera vida, sucede-se a existência. Dá-se a oportunidade, que é agarrada no espaço e no tempo certo, tornando possível o impossível.
Este milagre é simbolizado pela sakura, aquele instante da primavera em que as flores podem manifestar-se brotando do eterno, e pelo efémero ser, por todo o sempre.
A mente racional consegue conceber o limitado, o causal, o efeito, o objetivo, o objeto, o separado, o propositado e tudo o que é aparte. A própria ideia de que o objeto é uma ilusão e algo subjaz a um objetivo, transcende o pensamento racional que se conforta na razão, na separação do moral e imoral, bem e mal, no juízo ou senso.
Vasco Daniel
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