Biografia dos dias sem princípio
Coluna de Inês peceguina7 MIN DE LEITURA | Revista 33
Eu(s) e tu(s).
“When I enter most intimately into what I call myself, I always stumble on some particular perception or other, of heat or cold, light or shade, love or hatred, pain or pleasure. I never can catch myself at any time without a perception, and never can observe anything but the perception.”
“Quando entro mais intimamente naquilo a que chamo de mim mesmo, tropeço sempre numa ou noutra percepção particular, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me em nenhum momento sem uma percepção, e nunca consigo observar nada para além da percepção.”
David Hume, A Treatise of Human Nature (1740)
Quando um bebé humano nasce, parece, não consegue saber de si mesmo, como um ser separado daquele que dele cuida, numa base regular e consistente. Não se vê ou se sente separado desse cuidador, que daqui para a frente chamarei mãe, mas que na prática, pode ser outra pessoa que não seja a mãe, desde que cumpra esses critérios da regularidade e da consistência, num padrão de disponibilidade e presença física e emocional.
De acordo com a investigação a Ocidente, é apenas por volta dos dois anos de idade, que um bebé começa a desenvolver esse sentido de si mesmo, um self, e que começa a ser capaz de pensar sobre si, como uma entidade separada do outro. Uma das evidências mais utilizadas para corroborar esta hipótese – a consciência de si -, surge através do espelho. Mais ou menos por volta desta idade (dois anos), os bebés começam a ser capazes de reconhecer-se no espelho, ou em fotografias. No caso do espelho, quando essa noção já está implementada, um bebé a quem a mãe, de lábios pintados, dê um beijo, de forma ligeira, de modo a que não seja perceptível a sensação física ou do toque do baton, uma vez que se veja ao espelho, e sem saber desse acontecimento, o bebé vai tentar tocar, reconhecendo o seu corpo no espelho, como se alguém fora de si o observasse. A mesma tomada de consciência do corpo, o seu corpo, já foi observada com o mesmo tipo de experiência (uma marca colorida), por exemplo, nos golfinhos. E é geralmente depois desta conquista, pelos três anos afora, no caso do bebé humano, que surge também na linguagem de uma criança pequena, o vocabulário da posse, o meu, o teu, o dele(a), o(a) nosso(a).
Trata-se de um momento incrível, uma transição de percepção do mundo, o nascimento de uma fronteira, uma pele, um limite, que separa o eu do outro, o dentro do fora, o que pertence do que não pertence.
Porém (há sempre um porém…) à medida que avançamos na nossa história, na nossa infância, e nas outras épocas da nossa vida, e também à medida que reconhecemos que muitas dessas épocas não se separam de forma objectiva, co-existindo no mesmo espaço e tempo, dando sinais de ainda ali estarem, e de repente nos sentirmos outra vez com 7 ou 8 anos, ou 15 ou 16, ou até com 90, mesmo que ainda longe dessa idade cronológica, muitas pessoas, tal como a citação de Hume, têm essa experiência de que a sua existência separada da existência do outro e de todas as outras coisas que fazem parte do ambiente onde cada um de nós vive, regular e consistentemente, não é assim tão clara.
Seja como for, é também verdade que a maioria das pessoas, arrisco, não vai dedicar muito tempo a estes momentos de pensamento sobre si, debruçando-se em modo filosófico-poético sobre o que é isto de existir, de ser. E é também por essa razão, arrisco, que muitos de nós, não conseguimos mesmo distinguir o que é mesmo eu, e o que não é. E ainda, talvez, porque o eu, pode não ser mesmo, uma coisa, que exista de forma separada, suficientemente separada de maneira a que se distinga como uma marca de baton.
Mas regressemos ao bebé, e à criança. Durante estes anos, a percepção que a criança tem sobre si, sobre quem é, o seu lugar no seu mundo, no seu núcleo familiar e nos sistemas próximos, fora da família, que gradualmente ocupam um lugar importante, como espelhos, é altamente condicionada por aquilo que a criança recebe das suas figuras de referência. Aqueles que estão próximos, e de quem ela gosta. Como se fosse uma espécie de refrão, na melodia da sua vida, as palavras e os comportamentos que lhe são dirigidos, toda a comunicação, verbal e não verbal, vai dando origem a uma espécie de relevo, de ecologia, de mapa sobre quem é aquela criança, para si mesma.
No livro de Jutta Bauer, Quando a mãe grita, um pequeno pinguim é repreendido pela mãe, que lhe grita. E o pinguim, que talvez até já se soubesse numa existência separada da da mãe, mas ainda numa posição de grande proximidade e exposição à regulação externa (a todos os níveis), parte-se em vários bocados. Des-limita-se, fragmenta-se. Uma perna para um lado, outra para o outro, um bico nas nuvens, uma pequena cauda no meio da floresta. O corpo todo separado. E para muitas crianças (e para muitas pessoas, em qualquer idade), existem sempre outros, fora de si, e elementos da sua vida, fora de si, que são agregadores do sentido de si. Sem estes elementos, ou quando os elementos se retiram abruptamente, ou se manifestam de forma que questiona a segurança, a base, a estrutura de self, o refrão, seja ele qual for, a noção de eu, pode partir-se. No caso das crianças, cujas ferramentas mentais, psicológicas, fisiológicas, estão ainda em desenvolvimento, existe uma dependência enorme para depois recuperar esse sentido, e dar novamente forma a uma estrutura coesa. No livro, o pinguim acaba por re-unir o seu corpo, recuperando a sua forma, os seus membros dispersos, a sua identidade. Não através de si, mas através da mãe. É a mãe que vai buscar as várias partes e as cose, uma-a-uma, restituindo o corpo, a pele. E é este o poder de uma mãe. O poder de um adulto que tem a responsabilidade de cuidar de uma criança. E é também esta noção, de que a criança não é capaz, sozinha, de se re-compor, quando transborda dos seus limites – emocionais – que dá (ou devia dar) a quem cuida, a consciência de que a dependência da criança para se organizar, para se apaziguar, não acontece de dentro para fora. E que se a dependência for entendia como uma falta de maturidade ou, pior, de vontade, ou feitio, ou manha, não se permite que a criança aprenda, através da observação do outro, de forma regular e consistente, a saber como se faz. Porque ela sozinha, não consegue. Mais, na ausência dessa regulação externa, e como forma de preservar minimamente a sua estrutura, a criança vai, num movimento de sobrevivência, sim, trata-se mesmo de sobreviver, e de se adaptar a um certo ambiente e tipo de respostas, procurar outras formas de dar sentido a si mesma. Vai procurar activamente por qualquer coisa que preencha, que a faça sentir o corpo com todas as partes, que a faça sentir-se dentro de uma pele. Pode ser a chucha, pode ser o polegar, pode ser um corpo a balançar, pode ser a comida, pode ser as unhas que rói, pode ser qualquer coisa, que vista fora dali, e de uma perspectiva da psicologia clínica e do desenvolvimento, é um sinal de compensação evidente, e que tem evidentemente uma boa razão para ali estar. É uma adaptação. Que ajuda a reduzir a ansiedade, a angústia, e que devolve à criança esse sentido de estar e ser inteira.
A criança entretanto cresce.
As melodias que a criança ouve, e os refrões, entretanto, não se alteram assim tanto, muitas vezes.
Mesmo que se alterem, mais tarde, o contexto, e as possibilidades de interacção e relação, da pessoa, persistem muitas vezes as respostas. As adaptações, que entretanto o deixaram de ser necessárias.
E daí para a frente, cada um de nós, uns mais, outros menos, traz consigo o desafio de abrir a caixa de ferramentas, e perceber quais são as que pode substituir, quais as que pode até deitar fora, quais as que precisa ainda. Reconhecendo que algumas, pela longevidade, vão deixar sempre uma marca, um baixo-relevo, uma sombra. Que algumas ainda brilham no escuro, e que nos momentos em que a vida nos grita, tirando-nos o tapete, e partindo-nos em fragmentos, surjam vivas, como estratégias aparentemente úteis, mas que poderão, se conseguirmos, com ou sem ajuda, com ou sem regulação externa, ser progressivamente dispensadas. Afinal o eu, e o sentido de si, não são dimensões passivas e estáveis. São vivos, permeáveis, passíveis de ajustes e de re-configuração. Reconhecendo, ainda assim, que a vontade, o desejo, o querer, a força interior, os planos, o desenho, não se faz num traço único a uma só mão.
Em vez de uma visão bidimensional – o eu versus o outro, talvez seja mais rica uma visão de dimensões múltiplas. O psicólogo Ulric Neisser (1988), propõe, por exemplo, um modelo, em que o eu (self), é conceptualizado como um mecanismo de capacidades dinâmico, complexo, relacional, de multi-aspectos, processos, estados e traços que suportam um certo grau de acção. O self de múltiplas dimensões, sugere, tem pelo menos cinco factores distintos, mas funcionalmente complementares: ecológico, intersubjectivo, conceptual, privado, e temporalmente extenso. Estas dimensões operam em conjunto, ligando a pessoa ao seu corpo, ao seu mundo social, ao seu mundo psicológico, e ao ambiente. Através desta proposta, Neisser desafia-nos a re-avaliar as fontes de informação que nos ajudam a identificar o self. Existem (propõe) cinco fontes, que são tão diferentes umas das outras, que pode fazer sentido conceber que cada uma dê origem a um self “diferente”.
Primeiro, existe o self ecológico, ou incorporado no mundo físico, que percebe e interage com o ambiente físico; depois, o self interpessoal, ou integrado no mundo social, que constitui e é constituído pelas relações intersubjectivas com os outros; o self temporalmente extenso, ou self no tempo, tem a sua base nas memórias do passado e na antecipação do futuro; o self privado, que está exposto às experiências disponíveis apenas a cada um de nós, a cada pessoa, e não aos outros; e, finalmente, o self conceptual, que (verdadeiramente, ou falsamente) representa o self ao self, desenhando-se a partir das propriedades ou características não apenas da pessoa, mas também dos contextos sociais e culturais aos quais esta pertence.
Naturalmente que se trata de uma proposta para organizar um tema que será sempre um tema. O que não varia, nunca, é que esta construção começa cedo, talvez ainda na gravidez, no bebé imaginado, nas experiências precoces da infância. E que boas estruturas, carecem de bons alicerces, e que a construção desses alicerces, começa sempre no outro que é, em si, uma quantidade de outros que são, por sua vez, outros outros, num ciclo que se repete a cada nova existência.
Somos sempre eus-nos-outros-e-outros-nos-eus.
Em vez de uma visão bidimensional – o eu versus o outro, talvez seja mais rica uma visão de dimensões múltiplas.
Inês Peceguina
PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação
Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.