Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 33

Quando o coração desponta 

A propósito do sentido de pertença e inspirado na lenda portuguesa “Amendoeiras em Flor”

Quando um rebento, na sua fragilidade tenra, sente pela primeira vez o ar à superfície da terra que atravessou, conhece com afinco os segredos, os labores e os frutos da escuridão. Beatriz também. Na delicadeza da sua pele, de Beatriz e do rebento, escreve-se a tenacidade de quem ousou romper o chão e tornar-se visível. As saudades de casa levaram-na a entender a capacidade de ver sem os olhos e, na melancolia daquilo que foi perdido, descobriu a força cicatrizante das coisas belas.

O vazio, a falta e o estranhamento fizeram com que, sorrateiramente, as raízes que tinham sido arrancadas de outro lugar tivessem vindo a crescer e a ramificar-se dentro do seu próprio corpo, escalando pernas, tronco, braços e aninhando-se no coração.

E como que por quebra de feitiço, foi aquando da chegada delas ao íntimo de si que Beatriz voltou a sentir o sabor das amêndoas, a recitar os poemas da terra e a reconhecer o chilrear do estorninho.

E, por incrível que pareça, foi também naquele momento, aparentemente tão banal como qualquer outro, que a nova paisagem a envolveu e a tomou também como sua. No momento em que a sensação de estar fora do lugar se desvaneceu no ar como um sopro. Do coração.  Agora pertence também a esta paisagem e tal como a mão não questiona se pertence ao corpo, Beatriz também não. Tal como a pedra não questiona se pertence ao chão, Beatriz também não. Tal como o rebento não questiona se pertence à vida, Beatriz também não. As próprias raízes sanaram a ferida no peito e Beatriz passou a ser do lugar. Quem a olha, seja flor, mineral ou bicho, sabe que Beatriz é dali. E de lá.

Não há como saber, e muito menos como prever, quando acontece. Depois de milhões de passos percorridos na mesma rua, depois de infinitas gotas de água bebidas na mesma fonte, depois de uma dúzia de palavras colecionadas e de uma pitada de pronúncia. Depois de milhares de interrogações e de um alqueire de saudades. Depois de quatro estações multiplicadas por outros tantos. Depois de tanto para contar e outro tanto por dizer. Alcançou-a como um raio, como uma flecha e como uma graça. No mesmo caminho percorrido, na mesma árvore celebrada, na mesma clareira visitada. 

O coração de Beatriz alcançou o lugar onde os seus pés já tinham chegado faz algum tempo. Os pulmões inspiraram pela primeira vez. E o horizonte finalmente revelou-se. O ecossistema dali habita agora cada um dos seus cabelos. Tal como o de lá. A pele reconhece ambos os territórios e estes são mapas desenhados na pele. E apesar de não sabermos quando acontece, sabemos como acontece.

Pois a pertença é um direito que desponta de lugares da alma nunca antes percorridos, onde as sombras foram um dia exiladas. Depois do luto que despe armaduras. Depois do adeus. 

Fica o cuidado firme e paciente ao rebento. E o corpo já não estranha a paisagem. O corpo entranha-se agora na biografia do lugar, porque a alcança em cada lugar de si. E o corpo de Beatriz alcançou-a e quando a alcançou ficou e Beatriz não mais se abandonou. E quando ficou, a vida deu-lhe lugar. Para onde quer que vá. E as primeiras flores brancas e doces brotaram das amendoeiras anunciando a primavera. 

O coração de Beatriz alcançou o lugar onde os seus pés já tinham chegado faz algum tempo.

Os pulmões inspiraram pela primeira vez. E o horizonte finalmente revelou-se.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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