artigo de Celso Joabe

Sobre roupas de personalidade

2 MIN DE LEITURA | Revista 58

O ponto central da consciência, que podemos chamar de o Grande Observador, é uma entidade profunda e enigmática, camuflada por infinitas camadas de sentimentos, memórias e autoidentificações. Este núcleo essencial, quando nos aproximamos dele, revela-se mais distante do que o que costumamos chamar de “eu”. Uma de suas características primordiais parece ser um magnetismo inerente, que o atrai para as formas e padrões moldados ao longo da vida pelas experiências do indivíduo.

Crescemos acreditando que somos o que fazemos ou pensamos, o que gera uma consequência natural: o Grande Observador deixa de estar consciente de si. Quando, pela primeira vez, ele se percebe, torna-se evidente a separação entre sua essência e os estereótipos que vestimos — essas “roupas de personalidade” que criamos e alimentamos com o tempo. Essas vestes psíquicas utilizam o Observador como corpo e possuem diferentes forças magnéticas que as atraem para seu campo, como polos opostos de um ímã. Cada uma traz consigo elementos de experiência que refletem o desejo intrínseco do Observador de explorar ao máximo as possibilidades da existência.

Essas vestes são essenciais para a sobrevivência e a adaptação, ao poderem ajustar o tônus corporal, preparando-o, por exemplo, para enfrentar situações de perigo. No entanto, o controle sobre a troca dessas roupas é, na maioria das vezes, inconsciente. Escolhemos instintivamente o que parece mais adequado para cada ocasião. O problema surge quando nos identificamos plenamente com essas vestes e perdemos o controle sobre aquelas que possuem uma natureza destrutiva ou violenta — geralmente criadas em momentos de estresse ou trauma, como formas de defesa.

Após o momento crítico, essas roupas indesejadas são frequentemente relegadas ao armário do subconsciente. Contudo, há nelas uma força de autopreservação impressionante: quanto menos atenção recebem, mais intensamente reagem ao menor estímulo, lutando para se tornarem novamente a vestimenta principal. Quando isso acontece, confundimos o que somos com essas roupas, desconectando-nos do Grande Observador e da harmonia sincrônica do universo — algo que a filosofia taoista nos alerta. Quando Lao Tsé fala sobre “agir sem agir”, podemos interpretar isso como a necessidade de nutrir nossas ações na essência do Observador, utilizando as roupas adequadas sem nos perder nelas.

Poucas pessoas conseguem atingir plenamente a essência do Observador, mas o caminho parece promissor. Em raros momentos de equilíbrio, quando observamos o mundo através dos olhos do presente, a sensação de conexão com o todo é indescritível. No entanto, algumas vestes, especialmente aquelas alimentadas por anos de energia acumulada — como as moldadas pela ansiedade, compulsão ou traumas da infância — podem se tornar tão poderosas que se tornam padrões dominantes. A melhor forma de lidar com essas roupas é cultivar uma visão distanciada, enquanto nutrimos conscientemente vestes opostas e construtivas.

O desejo plástico, nasce da necessidade das roupas de personalidade se manterem vivas. Quanto mais caem no esquecimento, mais estímulos enviam à superfície sensível do Observador, buscando ser alimentadas. Os pensamentos, nesse sentido, são microestímulos que aumentam a energia dessas personalidades, funcionando como iscas para direcionar seus desejos.

Os conflitos internos emergem da falta de compreensão dessa dinâmica. Vivemos em uma sociedade que supervaloriza a personalidade, e o maior medo coletivo parece ser o esquecimento — o que nos liga ao desejo de imortalidade. Para evitar que nossas vidas percam significado, apegamo-nos a coisas que nos dão a ilusão de continuidade, acreditando que, ao sermos lembrados, permanecemos vivos. Contudo, na era da conectividade, a ideia de destaque global está cada vez mais fragmentada pelas dinâmicas dos algoritmos, que promovem ondas passageiras de exposição. Até a arte, que deveria libertar a alma, tem alimentado falsos egos, tornando-nos ainda mais presos às vestes de personalidade.

Nunca estivemos tão desconectados de nossos centros. O Grande Observador, sufocado pelas roupas, se perde. Com isso, caímos em depressão, nos afastamos das coisas importantes e nos distanciamos do corpo total da existência.

O grande desafio do homem moderno é dar o passo quase impossível: desapegar-se de si para se integrar ao grande corpo planetário. Isso exige sabedoria e maturidade, pois a individualidade tem seu valor. O equilíbrio entre ser o uno e ser o todo talvez seja a chave para a evolução.

Para citar este artigo:

JOABE, Celso. Sobre Roupas de Personalidade. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/os-enfeites-de-origami/, número 58, 2025;

Os conflitos internos emergem da falta de compreensão dessa dinâmica. Vivemos em uma sociedade que supervaloriza a personalidade, e o maior medo coletivo parece ser o esquecimento — o que nos liga ao desejo de imortalidade. Para evitar que nossas vidas percam significado, apegamo-nos a coisas que nos dão a ilusão de continuidade, acreditando que, ao sermos lembrados, permanecemos vivos. Contudo, na era da conectividade, a ideia de destaque global está cada vez mais fragmentada pelas dinâmicas dos algoritmos, que promovem ondas passageiras de exposição. Até a arte, que deveria libertar a alma, tem alimentado falsos egos, tornando-nos ainda mais presos às vestes de personalidade.

celso joabe

celso joabe

Músico

Músico multifacetado que transita por diversos gêneros musicais, como jazz, MPB, funk e choro. Sua paixão pela música o levou a mais de três décadas de experiência,aprimorando suas habilidades no Conservatório de Tatuí e se destacando na cena musical de Assunção, no Paraguai. Atualmente em Curitiba, Celso dedica-se à cena instrumental, atuando como pianista em diversos trios e quartetos, compondo trilhas sonoras e compartilhando seu conhecimento como professor. Sua criatividade se expande para a literatura,com a publicação do livro de contos”Contos do outro lado” pela editora Armazém de Quinquilharias e Utopias.

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