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Um Falcão Peregrino À Janela
Coluna de Ana Alpande
3 MIN DE LEITURA | Revista 57
Terceira Semana De Inverno
Lua Crescente Em Aquário
O dia amanhece cor de gelo, e o beijo do sol levanta a penugem de cristais de água.
Respiro o ar que enrijece as narinas, agarro no estrume de cavalo e começo a preparar a cama para os bebés, nome carinhoso que dou às mudas de couves, organizadas no tabuleiro por tamanho e cor: couve roxa, couve-flor, galega e coração de boi, pequenas e bravas folhas, à prova de gelo e vento.
Coisas pequeninas, com tanto de vulnerável quanto de destemido, Dão cor ao terraço adornado por malvas farfalhudas e acelgas adultas que cresceram espontâneas a seu bel-prazer. Abro espaço na terra escura para as jovens plantas, separo com cuidado as suas raízes e cheia e fé na sua resiliência confio-as ao solo de Inverno.
Lembro-me que neste dia, há um ano atrás, descobri que a Sandra e a Marília morreram, ambas de cancro, senti a morte de ambas como cedo demais embora nada saiba sobre os tempos certos ou errados para a morte. A Sandra era astróloga, falámos meia dúzia de vezes, concordando com as visões uma da outra, a Marília era aluna, cliente, mulher que muito admirava, mãe maravilhosa que deixou dois filhos cedo demais, aqui o uso da palavra “cedo” é mesmo inequívoco, estas crianças precisavam de mais tempo com a sua mãe, como todas as crianças. Penso na Marília com carinho e admiração, ainda me espanto com a sua coragem e resiliência, viveu em vários países, sempre a começar do zero, nunca se queixou. Colocava-se inteira em tudo o que fazia, que mais podemos pedir a um ser humano?
Vejo-me tantas vezes a inchar como um balão, cheia de ideias e aspirações, de tão grande que fico, tão cheia de ar, voo para longe e deixo-me cá em baixo ao abandono. Admiro profundamente as pessoas que só querem o dia-a-dia, uma hora após a outra, talvez tenha sido o cancro o grande mestre da Marília, já que conviveu com ele durante anos, com ele conquistou muitas proezas e ao mesmo tempo sofreu várias injúrias.
Pouso as ferramentas no alpendre e com a Marília no coração venho para casa tratar do almoço.
Já em casa faço bolachas com os restos, massa mãe e compotas a passar de prazo. Oiço um estrondo na janela da cozinha e vejo um tufo de penas a flutuar no ar, corro para a rua para ver o que se passou e as minhas previsões cumprem-se, um melro jaz no chão de olhos abertos e respiração fina. Toco-o suavemente, ofereço-lhe a minha presença, o meu calor. Vejo-o quase sem reação e arrisco pegá-lo com a mão, percebo o pescoço hipotónico, provavelmente partido. O corpo quente jaz nas minhas mãos, agora imóvel. Aconchego-o e observo-lhe as várias camadas de penas (curiosidade de futura aprendiz de ornitóloga), deixo-o na terra para servir de alimento a outros animais. É Inverno e está muito frio, nada se desperdiça nesta estação.
Volto a casa para varrer o chão e lavar a loiça, a vida regressa ao normal, o melro vira alimento, o seu espírito impregna os meus poros, somos do mesmo ar e assim permanecemos. O que é que alimentamos quando mortos? O que é que alimentamos quando vivos?
Saio de casa para ir comprar ramos de couves para a semana, ramalhetes de luxúrias verdes cultivadas pelo Rodrigo, um jovem engenheiro agrícola que começou um projeto de agricultura biológica na minha região. Tenho muito carinho pelas pessoas a quem compro os meus legumes, acho que os verdes são a principal substância do meu sangue. O meu ADN partilhado com o mundo vegetal. Clorofilo-me sempre que posso com folhas e legumes que tenham sido cuidados por mãos generosas e corações e carinhosos, o que são cadeias de ADN se não entrelaçamentos de relações complexas e atemporais?
Fiais da Beira, 2 de Janeiro 2025
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CÍRCULOS DE LUTO
com Ana Alpande e Ana Sevinate
Reunimo-nos em círculo, para podermos atravessar lugares de perda, unid@s pelo mesmo chão e pelas linhas que tecem e entrelaçam panos e histórias. Em breve mais informações sobre os próximos círculos.
Para citar este artigo:
ALPANDE, Ana. Terceira Semana de Inverno. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/terceira-semana-de-inverno/, número 57, 2025
O meu ADN partilhado com o mundo vegetal. Clorofilo-me sempre que posso com folhas e legumes que tenham sido cuidados por mãos generosas e corações e carinhosos, o que são cadeias de ADN se não entrelaçamentos de relações complexas e atemporais?
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Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.