Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

4 MIN DE LEITURA | Revista 57

Sustentar o incapturável

Outro ano se inicia. No entanto, a sensação de que temos é que não há uma virada, um reinício, uma fresta no portal que poderia nos conduzir a outras condições de vida em termos planetários. Há, no cenário que avistamos, acontecimentos locais, nacionais e globais, aparentemente distintos, mas que, se olharmos mais de perto, com uma espécie de lupa interpretativa, logo nos damos conta de que são narrativas de uma mesma versão de mundo.
Os que militam por políticas mais justas, sociais, econômicas e ambientais, e por mudanças nos modos de gestão da Vida, deparam-se com o enfraquecimento de um tipo de mundo, que parece se converter em uma utopia cada vez mais distante. Os tecelãos e tecelãs da teia da vida veem, cada dia mais, os fios se esgarçarem. Descobrimos que estamos imersos em uma ambiência que captura todas as formas de alternativas de mundo – que despontam nas mentes, nos corações e nas práticas dos militantes, tecelãos, idealistas, convertendo-as sempre em mais do mesmo.
Mas como se dá esse processo de captura desses sonhos de habitar a vida?
Para pensar isso precisamos adentrar em um campo sutil, inconsciente, micropolítico, que é impactado por uma espécie de maquinaria silenciosa, e que, em vez de nos capturar, cria em nós implantes complexos, no campo dos desejos que nos habitam. Lembremos que o campo dos desejos sempre precede ao campo dos interesses. Assim, como em uma espécie de implante, dentro desse campo dos desejos, somos impregnados e bombardeados, ininterruptamente, por milhares de imagens-referência, sobre formas massificadas de estar no mundo, de existir e de viver, de nos relacionar, de amar…  de tal forma, que todas as nossas singularidades vão sendo, por nós mesmos, deslegitimadas, subalternizadas, destituídas. O singular passa a ser uma dimensão outsider. Sobre ela recaem todas as inadequações, os desajustes, os não pertencimentos. E realmente, estar comprometido existencialmente com a produção da singularização da vida – ou com modos não capturáveis -, torna-se uma jornada para os poucos heróis. Não é fácil habitar as bordas do sistema, por escolha ou falta dela.
Não é fácil caminhar na contramão da massa, na contra-hegemonia de processos que são ridicularizados, a cada dia, pelo sistema.
Então, permitir a captura de processos que podem portar diferenças e alternativas, torna-se um processo usual. E o resultado disso é que dentro de cada um de nós habita um revolucionário e um conservador, convivendo ali, simultaneamente. Em nós nasce a cada dia o sopro, como um desejo de mudança. Mas, quando vemos, estamos nós, aqui e acolá, como marionetes invisíveis, de um sistema quade determinante.
Nesse momento, por exemplo, estamos nós – que enunciamos diária e coletivamente, ideias e propostas, com vozes dissonantes e divergentes, na grande praça pública e global das plataformas digitais -, como marionetes, presos por fios invisíveis, sendo determinados pela política do dono da Meta (empresa que inclui o Facebook, o Instagram, o Threads e o WhatsApp), que tem pregado, por sua vez, tudo aquilo que combatemos social, cultural, ambiental e politicamente, e que levou milhares de anos e vidas para se constituir minimamente como estado democrático de direito.
Diante disso, o que fazer? Que caminho seguir?
Passou da hora de cultivarmos um compromisso, conosco mesmo, e com nossa comunidade de vida, de nos empenharmos na produção de modos singulares de viver. Precisamos, quem sabe, entre outras coisas, mais do que nunca, combatermos todas as formas de monoculturas, que querem fazer do fenômeno da existência, um projeto meramente capitalista. É necessário estudar subjetividade, pensar e conversar sobre isso. Apoiar diversidades e singularidades em todas as esferas. Ensinar às pessoas a arte de criar e inventar formas outras de vida. Encorajar as pessoas que já fazem isso e têm sido produzidas como invisíveis. Amar e apoiar tudo o que é diferente. É precioso que liberemos os fluxos dos desejos que vêm sendo capturados.
Nesse caminho, deveria ser um compromisso diário, abrir atalhos, ensaiar experiências vivas não previstas. Encarar no cotidiano os percursos dos nossos desejos, parece-me algo muito importante. E descontaminá-los, um a um, das imagens da Matrix:  algo que somente nós podemos fazer por nós. Criarmos comunidades de apoio mútuo nas encruzilhadas dos caminhos clandestinos. Inventar singularidades miúdas.
Penso que tudo isso conflui para a sustentação do incapturável. A captura se dá na monocultura, na massificação, na repetição e no empobrecimento da Vida. Sustentar o incapturável supõe diversificar, multiplicar, singularizar, inventar a experiência do viver. Que tal embarcamos em um projeto assim nesse ano que se descortina?

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Sustentar o incapturável. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/sustentar-o-incapturavel/, número 57, 2025

Penso que tudo isso conflui para a sustentação do incapturável. A captura se dá na monocultura, na massificação, na repetição e no empobrecimento da Vida. Sustentar o incapturável supõe diversificar, multiplicar, singularizar, inventar a experiência do viver. Que tal embarcamos em um projeto assim nesse ano que se descortina?

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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E-mail: maristelabarenco@gmail.com