artigo de Dulcineia Pinto

Os Enfeites de Origami

Activismo Delicado

7 MIN DE LEITURA | Revista 57

No rescaldo do Natal, findadas as festividades, as noites santas e o dia de reis, olho com complacência para os enfeites de origami que pendem dos ramos do pequeno pinheiro pousado sobre o móvel da sala. Em várias cores, encontram-se intercalados com pequenas bolas metalizadas, reluzentes, compradas numa qualquer superfície comercial.

A cada olhar sobre os enfeites de origami, feitos pelas minhas mãos e da minha filha, numas vésperas de Natal há muito passadas, brotam sentimentos de dor, apaziguamento, esperança, amor, dádiva e redenção.

Relembro o clima económico vivido pela minha família nessas vésperas, pouquíssimo dinheiro disponível para presentes e muito menos para enfeites. Mas como não ter novos enfeites? As superfícies comerciais com os seus longos corredores cheios de bolas, bonequinhos e pais natais vociferam múltiplas necessidades, entre as quais, a necessidade de possuir uma nova e vistosa decoração de natal para que este se transforme no Natal das nossas vidas. E, por isso, na tristeza que me invadia, e na certeza absoluta da necessidade de possuir uma nova decoração, de dar sentido, beleza e unicidade a esse evento singular, resolvemos construir uns pequenos enfeites em origami de cores várias.

A relação entre o Passado e o Presente é, para mim que sou historiadora assaz complexa. Revisito o Passado diariamente quer através do meu trabalho quer através de muitos dos meus passatempos. Por isso, o Passado é um lugar conhecido, que se faz presente a cada instante e que de bom agrado, acolho. Com naturalidade, digo que já não me recordo se fui eu que disse para fazermos os origamis ou se foi a minha filha, no alto dos seus 10 anos e pressentindo a minha dor, me falou: “Mãe, fazemos os enfeites.”

Desde então, pendurar estes enfeites na árvore de Natal tornou-se num ato de ativismo delicado. Nele integro a minha dor, nele reconheço a minha fragilidade, nele coloco a minha esperança. Em cada enfeite pendurado, relembro muitos Natais posteriores, onde já não faltou dinheiro para presentes e enfeites, num comprei uma árvore artificial, noutro um presépio em segunda mão.

Em cada enfeite pendurado, resisto ao impulso consumista, “ainda não é este ano que compro novas bolas” – penso com carinho por mim própria.

Em cada enfeite pendurado, relembro a dádiva da minha filha e pergunto-lhe se ainda se lembra de os termos construído. Claro. – diz ela – Mas já não sei como se fazem. – afirma também. Afastando, deste modo, o meu impulso de construirmos de novo juntas os enfeites, na esperança de construirmos também um novo mundo.

Faz seis anos que encontrei o ativismo delicado, através de uma ativista delicada, Nina Veiga, ativista delicada e artemanualista. Fiquei detida nos modos de expressão do ativismo delicado que se confundem com os seus, cuja beleza e delicadeza me chamavam a cada momento apesar da minha falta de compreensão.

O ativismo delicado chamou-me pelo seu nome, ativismo e delicado. Como é isso? – pensei. Levei seis anos para perceber que ele estava ali mesmo à minha frente, todos os natais, nos enfeites de origami. Na reflexão profunda que faço em cada olhar sobre eles, nos sentimentos que me suscitam e nas mudanças de comportamento que, continuamente, produzem. Os enfeites tornaram-se uma das minhas ações dentro do ativismo delicado, a primeira que posso denominar como tal.

Na verdade, compro muito poucos enfeites no Natal, nenhuns dos que vejo à venda superam o significado destes. Estes perpetuam a minha ação de resistência naquele ano em específico, quando a tristeza me invadiu e eu resisti através de uma ação manual. Fiz eu, construi eu, imaginei eu, sonhei eu mas, sobretudo, fiz em conjunto, construi em conjunto, imaginei em conjunto, sonhei em conjunto. “Fui a ação que quero ver no mundo.” – como afirmou Kaplan.

Os enfeites condensam muitas características do ativismo delicado, a ação consciente, a reflexão sobre a ação, a mudança permanente de comportamentos, num ciclo interminável, ou pelo menos, no ciclo que é a minha vida. São o objeto, mas são também o sujeito, e em cada olhar são sujeito e objeto. Como me posso explicar? Em cada olhar vejo-me construindo os origamis, a escolher as cores, a colocar a cola no papel para os fios, sinto a fragilidade do papel, revejo essa fragilidade em mim. Com eles a ação torna-se presente, eternamente.

No ativismo delicado reconhecemos a dificuldade de agir no mundo, sabemos que não agimos sobre o mundo, agimos sobre nós mesmos e assim temos uma hipótese remota de agir sobre o mundo. Em cada enfeite cristaliza-se o não consumismo, a criatividade humana e a cooperação, a redenção daquela véspera de Natal.

Contudo, o enfeite não é uma receita de sucesso, não pode ser integrado num plano de atividades ativista com objetivos definidos, cronograma e metas a atingir. A ativista delicada sabe que as ações planejadas por outros, com metas sociais a atingir, acabarão, muito provavelmente, do lado a que ela tão fortemente resiste. O ativismo sofre, irremediavelmente, com as forças que pretende atingir. Consumo ou não consumo?

Se tornarmos a ação de construir enfeites de natal em origami no último grito de ativismo, em breve as forças do consumismo, inventarão em cem número de papeis de lustro de mil e uma cores que clamam por cada uma de nós. “Vem! Compra-me!” – dizem-nos. “Só comigo o teu enfeite será perfeito.”

Assim, o ativismo delicado encontra na manualidade a agência aliada. Através da manualidade consciente agenciamos o mundo. Sentimos, como afirma Kaplan, que, “o nosso próprio despertar é tanto uma busca quanto a chave para qualquer empreendimento verdadeiramente ativista.”

Retomo o olhar sobre os enfeites de origami nesta noite de reis e antes de os encaixotar mais uma vez e os guardar para o próximo ano. Percebo, finalmente, que os produzi em resistência às forças que me oprimiam, usei os recursos internos que possuía, refleti recorrentemente sobre essa ação, e desejo, com esperança, tornar-me consciente. Neles encontro liberdade.

Bibliografia:

https://www.ativismodelicado.art.br/´

O ativismo delicado – Uma abordagem radical para as mudanças de Allan Kaplan e Sue Davidoff da Proteus Initiative

Para citar este artigo:

PINTO, Dulcineia. Os Enfeites de Origami. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-57/os-enfeites-de-origami/, número 57, 2025;

O ativismo delicado chamou-me pelo seu nome, ativismo e delicado. Como é isso? – pensei. Levei seis anos para perceber que ele estava ali mesmo à minha frente, todos os natais, nos enfeites de origami. Na reflexão profunda que faço em cada olhar sobre eles, nos sentimentos que me suscitam e nas mudanças de comportamento que, continuamente, produzem. Os enfeites tornaram-se uma das minhas ações dentro do ativismo delicado, a primeira que posso denominar como tal.

Dulcineia Pinto

Dulcineia Pinto

INVESTIGADORA DO SENTIR HUMANO

Arqueóloga de formação, investigadora histórica por paixão, artemanualista nos tempos curtos e ativista pela educação nos restantes. Todos juntos ou em dissociação contribuem para os mergulhos no sentir humano.

Encontra-se no espaço sideral os meus artigos. Converso regularmente com a Nina Veiga no Navegar é preciso. Instagram.