Entrelaçamentos Inegáveis
Coluna de Telma G. Laurentino
4 MIN DE LEITURA | Revista 56
O nome dos sistemas que habitamos e o salmão nas árvores mais altas do mundo
Gostemos ou não, beneficiemos ou não, crescemos e vivemos num sistema patriarcal tecno-capitalista. Isto não é uma opinião negativa do mundo, mas mero facto histórico.
Crescer e viver dentro deste sistema significa que as nossas opiniões e epistemologias coletivas vão ser influenciadas por valores e normas culturais herdadas que, à partida, suportam a imutabilidade do sistema (mesmo quando nos imaginamos individualmente livres de participação).
Da mesma forma, uma árvore encarna características do solo onde nasce e cresce. Crescer numa sociedade antropo/ego-cêntrica [1], torna difícil tanto observar como suster um mundo ecológico.
Assim, solo pobre onde o pensamento dominante define que a relação entre seres vivos existe sob uma hierarquia de superioridade humana e de mercantilização da Terra, onde a competição hiper-individualista, essencial ao tecno-capitalismo, é também a única relação ecológica fundamental da evolução da vida… cresce culturas que perpetuam solo pobre.
É essencial a dúvida coletiva e radical [6], guiada pela definição dos sistemas. É essencial escutar histórias desafiadoras de paradigmas de solo pobre. O salmão nas árvores mais altas do mundo desafia o antropocentrismo e convida o ecosistémico.
Os salmões nascem em água doce de onde migram para o oceano para viver (dependendo da espécie) entre 2 e 7 anos. Regressam depois à água doce natal para se reproduzirem, e regressam em migrações enormes tanto em número de indivíduos como em distância.
Cada salmão encarna, no seu corpo, uma abundância de nutrientes oceânicos que são escassos nos seus rios natais, mas uma extensão de 250 metros de ribeiro no sudeste do Alasca recebe mais de 80 Kg de nitrogénio e 11 Kg de fósforo sob a forma de salmão, em apenas um mês [2].
O nitrogénio oceânico é encontrado no corpo das sequóias (Sequoia semprevirens) das florestas que co-habitam rios de salmão migratório.
Enquanto que não é surpreendente encontrar nitrogénio oceânico nos corpos dos predadores de salmão, foi surpreendente encontrar peixes nas árvores centenárias. O átomo de nitrogénio que os cientistas usam para compreender o fluxo ao longo da teia alimentar [3] é abundante em algas marinhas, mas muito raro em terra.
São as relações ecológicas entre milhares de espécies, ao longo de milhares de quilómetros, o entrelaçamento de ciclos de vida microbianos, fúngicos, vegetais e animais, que permitem o fluxo energético entre o oceano e a floresta.
Os nutrientes encarnados em salmão fluem no ecossistema através de predadores e decompositores. Os Ursos têm um papel grande, literalmente: cada urso na Colúmbia Britânica transporta centenas de quilos de peixe dos rios. A abundância de salmão é tanta que chegam a comer apenas as suas partes favoritas (apenas 5% do peixe). Lobos, águias, corvos, gralhas, gaivotas, lontras-ribeirinhas e visons também se alimentam da abundância de peixe. O festim dos carnívoros resulta em milhares de carcaças que são espalhadas pela floresta por outras espécies de predadores oportunistas, detritívoros e necrófagos. Os decompositores: fungos, bactérias e invertebrados garantem que “nada se perde, tudo se transforma” e compostam restos e dejetos em solo fértil para a vida vegetal.
As árvores incorporam no crescimento do seu tronco, o mais alto do mundo, os longínquos nutrientes oceânicos. Árvores de margens de rios ricos em salmão crescem três vezes mais rápido do que as suas parentes ao longo de rios sem salmão (os abetos Sitka levam 86 anos, em vez dos habituais 300, para atingir 50 cm de diâmetro).
Na Colúmbia Britânica, até 80% dos nutrientes da floresta provêm da migração do salmão [4].
E assim como as árvores vivem do salmão, os salmões vivem das árvores. A relação ecológica é recíproca. Os ciclos de vida são entrelaçados.
O corpo da árvore providencia a sombra aos locais de desova que assim se mantém à temperatura correta para o desenvolvimento dos ovos. As folhas alimentam invertebrados acima e abaixo da linha de água, que por sua vez alimentam os salmões. As raízes estabilizam as margens abrandando a erosão e protegendo a água limpa de que o salmão necessita.
Quando uma sequoia morria e caía num ribeiro, o serviço florestal dos E.U.A. costumava remover os troncos, assumindo que impediam a migração dos peixes. No entanto, mesmo após a sua morte as árvores contribuem para a vida de muitos outros: criam topografias importantes ao fluxo de água e nutrientes dos rios, e criam poças que abrigam peixes jovens e oferecem um lugar para descansar das correntes fortes. Os detritos de madeira fornecem alimento a fauna e flora aquáticas. A árvore morta, é ainda parte importante da vida do salmão.
Na verdade, os humanos são espécie integrante desta história desde há muito. As culturas, a subsistência, as interações inter-comunitárias, as tecnologias de pesca, a economia e a espiritualidade das nações indígenas do Noroeste Pacífico foram impactadas e influenciadas pela migração dos salmões [5]. A relação entre o humano indígena e as florestas de salmão é uma de respeito e reciprocidade. No entanto, as violências do colonialismo levaram não só ao assassinato e deslocamento dos povos indígenas locais, como à construção de barragens, desvio de águas, e desflorestação. Em conjunto, estas ações interferiram com a vida e migração dos peixes e da floresta como um todo. Peixes e florestas foram aproximades da extinção.
Hoje, graças a esforços de descolonização e à inclusão do conhecimento indígena ecológico nas medidas de conservação há populações de salmão e truta, e florestas, em recuperação. Na Tongass, no Alasca, nas florestas temperadas do Pacífico, na Colúmbia Britânica, e na floresta temperada de Sequóias da Califórnia esta relação entre o oceano e a floresta subsiste. Preocupamo-nos agora com a distribuição de contaminantes, para além de nutrientes, pelo corpo dos salmões que migram de oceanos largamente poluídos por atividades tecno-capitalistas, neo-colonialistas, da modernidade [4]. Assim como os nutrientes fluem por toda a teia alimentar da floresta, também fluirão os contaminantes.
É urgente nomear os sistemas que habitamos, os solos contaminados em que participamos, para saber como desafiá-los e compostá-los de forma radical [6] e eficiente. Chamar os sistemas por seus nomes não é uma visão negativa do mundo, é uma estratégia de mapeamento, é um compromisso de respeito e amor por estas histórias de beleza natural imensa, é uma expressão de esperança responsável, entrelaçada, e não aquiescente.
Fontes:
2 https://www.adfg.alaska.gov/index.cfm?adfg=wildlifenews.view_article&articles_id=407
3 https://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%A1lise_isot%C3%B3pica
4 https://www.nature.com/articles/s41586-024-07980-2
5 https://critfc.org/salmon-culture/tribal-salmon-culture/
6 “if, indeed, we wish to be radical in our quest for change—then we must get to the root of our oppression. After all, radical simply means ‘grasping things at the root.’” Angela Y. Davis in Women, Culture, & Politics (1990)
Sugestões para ver/ler:
The Salmon Forest (2017) documentário: https://www.youtube.com/watch?v=rm25cRi8TL8
Hospicing Modernity: Parting with Harmful Ways of Living (2021) Vanessa Machado de Oliveira
Para citar este artigo:
G. LAURENTINO, Telma. O nome dos sistemas que habitamos e o salmão nas árvores mais altas do mundo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-56/o-nome-dos-sistemas-que-habitamos-e-o-salmao-nas-arvores-mais-altas-do-mundo/, número 56, 2024
O corpo da árvore providencia a sombra aos locais de desova que assim se mantém à temperatura correta para o desenvolvimento dos ovos. As folhas alimentam invertebrados acima e abaixo da linha de água, que por sua vez alimentam os salmões. As raízes estabilizam as margens abrandando a erosão e protegendo a água limpa de que o salmão necessita.
Telma G. Laurentino
Bióloga
Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com