Entrelaçamentos Inegáveis
Coluna de Telma G. Laurentino
5 MIN DE LEITURA | Revista 55
EvoEco
A ciência de desafiar o excepcionalismo humano
Em época de Halloween, falo-vos de algo que me assombra enquanto bióloga evolutiva:
Esta imagem. Das mais associadas a “evolução.” Perpetua um entrelaçamento de equívocos na nossa psique coletiva que alimentam práticas eco-sistémicas opressoras e destrutivas.
Como? Podemos resumir a sua hi/estória interpretativa da seguinte forma: “O Homem branco evolui de um macaco, de forma linear, tornando-se o pináculo do progresso evolutivo.”
As premissas dessa hi/estória reflectem cosmovisões científicas e sociais:
- A supremacia branca [1,2] e o patriarcado [3] subjacentes na representação do homem que embranquece (já nos ancestrais, que sabemos ser errado) como representação da evolução.
- A crença de “o homem” ter evoluído “de um macaco” e assim, os “macacos” contemporâneos são menos evoluídos que o humano, que é uma forma aperfeiçoada da sua imbecilidade e primitividade.
- A crença da evolução linear em direção à humanização e modernização.
- A crença de que apenas uma espécie de humano habitou a Terra “de cada vez”, ignorando relações entre espécies contemporâneas de humanos ancestrais.
- A ideia de que já não estamos sujeitos a evolução natural, pois “chegámos” ao “pico” da evolução: o homem moderno, o Homo sapiens sapiens (O Homem sábio sábio).
Resumindo: a nossa existência é independente de, e mais evoluída que, todos os outros seres vivos. A vida evoluiu sequencialmente para atingir a nosso estado de homem (branco) moderno sábio.
Na dominância desta cosmovisão em nações imperialistas, o homem sábio sábio mata e mono-encultura. As consequências globais sentem-se na pele dos mais desprivilegiados, na mente em luto dos privilegiados e nos bolsos cheios dos mais privilegiados.
Duvidemos então, que seria da evolução humana sem:
- Os microorganismos que, também durante 3.8 biliões de anos, co-evoluiram os solos que crescem toda a nossa comida?
- A conversa ecossistémica entre o Saara, a Amazónia, os Andes e o fitoplâncton marinho que nos enchem os pulmões de oxigénio?
- As nossas relações com os lobos que se auto-domesticaram e influenciaram imensamente a nossa evolução [4]?
- Quem seríamos, Portugueses, sem as heranças genéticas ancestrais da hibridação entre o Homo sapiens e o Homo neanderthalensis registadas no Abrigo do Lagar Velho [5]?
As perguntas são tantas quanto as mudanças ambientais e relações ecológicas desde o último ancestral comum unicelular de toda a vida na Terra. Evolução quer dizer isso: a mudança não-linear, constante, de organismos em resposta uns aos outros e aos ambientes que: habitam, a que se adaptam e que co-modificam [6]. É um processo irregular, sem tendência antropocêntrica. A direção da mudança, quando a há, é co-criada pelo ecossistema e a história demográfica das populações dos seres vivos.
Assim, somos parte e não topo da biodiversidade. Herdamos essa pertença do tempo profundo por ancestralidade comum, e participamos nela através de relações ecológicas complexas, intra-específicas e trans-específicas.
O que nos diz de facto o estudo da evolução e ecologia?
Somos ramo da árvore-da-vida e fio da teia ecossistémica global.
Substituamos então a linearização antropocêntrica da evolução pela árvore filogenética da vida.
É um diagrama que representa a evolução da biodiversidade desde o último ancestral comum universal (a raíz da árvore, há 3.8 billiões de anos) através de divergências (ramificações) ao longo do tempo. Quando há extinções, os ramos ficam truncados no tempo, e espécies que sobrevivem continuam a evoluir linhagens adjacentes.
Todos os ramos que chegam à periferia da árvore (a copa) são nossos contemporâneos e estão a evoluir há tanto tempo quanto nós, são tão evoluídos como nós, mas cada ramo seguiu (e segue) um percurso evolutivo diferente ao longo do tempo, que depende de desafios específicos à sobrevivência e de relações com o ecossistema.
Ramos mais próximos partilham mais semelhanças genéticas e morfológicas entre si, e têm ancestrais comuns mais recentes.
Isto é muito fácil de “ver” entre os humanos e os chimpanzés. O nosso último ancestral comum viveu há “apenas” (em tempo de Terra) 6 ou 7 milhões de anos atrás.
Partilhamos muito externamente e internamente: 98.8% da sequência do nosso código genético é semelhante, o que resulta em várias expressões morfológicas e comportamentais partilhadas. Simultaneamente, os 1.2% de divergência genética entrelaçados com diferentes relações ecossistémicas das duas espécies traduzem-se também em muitas diferenças.
O parentesco com ramos com quem partilhamos ancestrais comuns mais antigos, com nós de divergência mais profundos, é mais difícil de perceber à superfície. Achamo-nos já muito diferentes de uma banana…
E somos…
Estimamos que o nosso ancestral comum com a banana terá vivido há 1.5 biliões de anos. As mutações e divergência adaptativas acumuladas são muitas em cada um dos ramos que divergiram e eventualmente culminaram bananas e humanos.
E não somos…
E, no entanto, partilhamos 40%* das sequências dos genes que fazem proteínas… Há proteínas no nosso corpo que o ancestral dos humanos e das bananas já sabia fazer já 1.5 biliões de anos atrás.
À complexidade hereditária do nosso parentesco com toda a vida adiciona-se a complexidade não-linear das relações ecossistémicas ancestrais e modernas que transformam a árvore numa teia.
Pensa-se que, há 407 milhões de anos, a relação de simbiose entre dois ramos diferentes da árvore-da-vida: uma alga e um fungo terá dado origem ao ancestral comum de todas as plantas terrestres (ancestrais da banana), que por sua vez, alteraram a atmosfera do planeta através da produção de oxigénio, o que abriu nichos evolutivos para todas as formas de vida que hoje respiram oxigénio (ancestrais nossos e do chimpanzé) [7].
E sim, inventamos a medicina, a higiene e tecnologias de suporte de vida, mas estamos ainda a evoluir como qualquer outra espécie, por exposição às condições que a Terra e nós mesmos co-criamos. Há evidências gravadas no nosso genoma da nossa adaptação a altitude, ao consumo de lacticínios, de tabaco…
Pertencemos à complexidade da vida na Terra por herança e por relação.
Como agiríamos se abandonássemos cosmovisões de excepcionalismo em favor da pertença e da responsabilidade na co-criação da vida?
Como agiríamos se, em vez de pináculo evolutivo, nos víssemos como ancestral comum de vida ainda por evoluir?
*Nota de complexidade: atenção, estas percentagens hiper-simplificadas não captam a complexidade dos processos hereditários nem da complexidade da regulação e modelação ambiental do genoma.
Ler mais:
- Livro “A Evolução culminou no homem? Progresso, contingências, catástrofes e extraterrestres” Teresa Margarida Avelar, Bertrand editora.
- Livro “O homem pré-histórico também é mulher: Uma história da invisibilidade das mulheres” Marylène Patou-Mathis, Editora Rosa dos Tempos.
- “Não, o homem não descende do macaco!”
Telma G. Laurentino para a APBE (2019) Medium https://medium.com/@telma.laurentino/n%C3%A3o-o-homem-n%C3%A3o-descende-do-macaco-f19df229111a
Referências:
[1] “The evolution of human skin pigmentation involved the interactions of genetic, environmental, and cultural variables” (2021) Nina G Jablonski, Pigment Cell Melanoma Research 34(4):707–729
[2] “How Evolution was used to Support Scientific Racism” (2017) Lindsay Pressman, Trinity College Digital Repository
[3] “O homem pré-histórico também é mulher: Uma história da invisibilidade das mulheres” Marylène Patou-Mathis, Editora Rosa dos Tempos
[4] “Self-domestication or human control? The Upper Palaeolithic domestication of the wolf” (2018) Germonpré, Mietje & Galetova, Martina & Sablin, Mikhail & Bocherens, Hervé. In book: Hybrid Communities Biosocial Approaches to Domestication and Other Trans-species Relationships (pp.39-64)
[5] “The early Upper Paleolithic human skeleton from the Abrigo do Lagar Velho (Portugal) and modern-human emergence in Iberia” (1999) Duarte, C.; Maurício, J.; Pettitt, P.B.; Souto, P.; Trinkaus, E.; Plicht, H. van der; Zilhão, J. PNAS 96 (13): 7604–7609.
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Niche_construction
[7] “The origin and evolution of mycorrhizal symbioses: from palaeomycology to phylogenomics” (2018) Christine Strullu-Derrien, Marc-André Selosse, Paul Kenrick, Francis M. Martin. New Phytologist 220 (4): 1012-1030.
Para citar este artigo:
G. LAURENTINO, Telma. EvoEco: A ciência de desafiar o excepcionalismo humano. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/evoeco-a-ciencia-de-desafiar-o-excepcionalismo-humano/, número 54, 2024
Pertencemos à complexidade da vida na Terra por herança e por relação.
Como agiríamos se abandonássemos cosmovisões de excepcionalismo em favor da pertença e da responsabilidade na co-criação da vida?
Como agiríamos se, em vez de pináculo evolutivo, nos víssemos como ancestral comum de vida ainda por evoluir?
Telma G. Laurentino
Bióloga
Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com