artigo de Maria Trincão Maia

As Mulheres da Minha Terra

3 MIN DE LEITURA | Revista 55

Sou da terra da Maria Lamas, foi na escola com o nome dela que estudei, seria quase impossível não a ter impressa em mim. É dela que roubo o título do meu texto, porque partilhamos a mesma terra e são das mulheres desta terra que falo, poderia falar de outra terra qualquer, mas são destas que falo. Irei trocar-lhes os nomes, pois não sabem que é sobre elas que escrevo e o que escrevo é apenas o meu olhar perdido no meu mundo.

Curvada pelo peso da vida, da dureza dos campos, onde não há espaço para a romantização, “Anabela” atende com um sorriso no mercado semanal. Duas vezes por semana monta e desmonta a banca, carrega as caixas cheias, expõe os produtos, muitos são apanhados na véspera. Tem uma doçura tão grande como o esforço que a vida lhe propõe. É gentil, é meiga e atenta. Pergunta pela família. Toma cortisona há anos, já vê mal e está tão curvada que é um enigma como aguenta tudo aquilo. Tem dois filhos criados, um marido, todos dados a “boa paz”, ela é a força motriz que faz girar as engrenagens. E o enigma afinal não é assim tão grande, aguenta porque tem que ser, porque não há outra forma. Porque a vida assim é, sem espaço para divagações, sem espaços para parvoíces românticas sobre a terra. Da produção ao consumidor final, sem romantizações, só realidade.

Da banca do peixe, “Jacinta” recebe com carinho, traz peixe da Nazaré – uma espécie de luxo para os torrejanos que vivem longe do mar – vem sempre fresco, sempre de qualidade. “Oh minha joia” e fala da depressão que tem há mais de 20 anos, desde que o seu cão morreu. “É a vida menina, temos que seguir, não há tempo”. Atrás, o marido faz as contas, está na sombra, ela é alma e coração da banca.

“Se o meu marido fosse vivo, dizia-me que a saia tinha que ser mais curta, que eu tenho boas pernas, fui tão feliz” conta-me “Fernanda” com a sua fita métrica ao pescoço. Pequena, de olhos claros expressivos, não deixa de trabalhar, é costureira, em cada canto uma fotografia do falecido marido e na cama o lugar dele nunca foi preenchido. Costura, cuida de pessoas mais velhas, cuida de prédios, porque se tem que fazer pela vida. E eu encosto-me à ombreira a ouvir as histórias dela, a altura pequena e o corpo roliço são o suporte para muito mais do que se possa imaginar, mas é alegre e bem-disposta.

“Júlia” casou-se nova, a sogra foi sua mãe. Criou dois filhos praticamente sozinha enquanto o marido bebia o que recebia, a fábrica onde fazia limpezas faliu, mas nunca parou, foi cozinheira, limpou casas e agora tira um curso de cozinha. Não tem a carta, mas o transporte urbano ajuda-a nos seus trajectos, quando não, anda a pé. Perdeu a sua casa graças as trafulhices do marido e aguentou. E quando falamos com ela, é sempre doce, sempre carinhosa, sempre bem-disposta.

 

“Que força é essa?
Que força é essa que trazes nos braços?
Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer

Que força é essa, amiga?
Que força é essa, amiga?
Que te faz levar o mundo todo na barriga
Que força é essa, amiga?
Que força é essa, amiga?
Que força é essa, amiga?”

 

Pergunta Capicua na sua adaptação da canção de Sérgio Godinho “Que força é essa”. Quando vejo o feminismo mainstream saudar as mulheres que estão no “top”, quando vejo a facilidade com que se julga uma mulher que fica num casamento infeliz, quando se julga uma mulher porque se acha de alguma forma superior, porque se acena com bandeiras modernas e progressistas, mas incapazes de honrar estas mulheres. Estas mulheres motrizes de engrenagens, onde toda uma família assenta, onde a vida não é construída para elas, mas por elas, porque nem sempre há escolha. As mulheres da minha terra são muitas vezes estas mulheres de vida dura, aquelas a quem a sociedade não vai fazer grandes homenagens quando morrerem, porque afinal nunca parou para vê-las. São mulheres quase invisíveis, só passiveis de ver para quem pode observar.

E o que todas têm em comum para além da vida difícil, o carinho e ternura com que tratam os outros, principalmente quem as trata bem. O sorriso, a gentileza, e volto a perguntar “que força é essa, amiga?”. Quantas mulheres no banco do autocarro para a cidade tem dois, três empregos, quantas mulheres sustentam famílias, cuidam dos efémeros e veem os maridos bêbedos e sentados no sofá. Sim esta realidade existe nas cidades, no campo. Quantas mulheres só queriam ter a carta de mota para serem independentes, só um pouco mais. Damos demasiadas coisas como certas, damos demasiadas coisas como direitos. Estas são as mulheres que me inspiram, não fazem discursos motivacionais, não dão palestras sobre ser uma líder, estão presentes com aquilo que a vida lhes dá e são vencedoras diárias de algo que poucos de nós podemos imaginar.

“O amor, p’ra ti, tem costas largas
Faz-te doce nas horas amargas
Invisível nas noites em claro
Ninguém paga o que mais te sai caro
Ninguém sara, essa escara é antiga
Tens o mundo todo na barriga”                      

Capicua

 

 

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Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. As Mulheres da Minha Terra. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-55/as-mulheres-da-minha-terra ,número 55, 2024

Estas mulheres motrizes de engrenagens, onde toda uma família assenta, onde a vida não é construída para elas, mas por elas, porque nem sempre há escolha. As mulheres da minha terra são muitas vezes estas mulheres de vida dura, aquelas a quem a sociedade não vai fazer grandes homenagens quando morrerem, porque afinal nunca parou para vê-las. São mulheres quase invisíveis, só passiveis de ver para quem pode observar.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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