O Canto do Verbo

Coluna de Ana Alpande

3 MIN DE LEITURA | Revista 54

O Vício Da Excepcionalidade

Adoro a palavra abençoar!

a-bem-soar

O som que se propaga no espaço,

além da palavra

onde a palavra não chega.

 

Abençoamos em voz alta, erguemos os tuneis anatómicos do ar e permitimos que este se espalhe da boca para fora, através de ondas sonoras tocamos o espaço e todos os corpos que o habitam.

Quando era pequena achava que abençoar era coisa para padres ou pessoas religiosas, exclusivo para alguém com algum poder especial, puro, sábio…excecional.

Pergunto-me várias vezes, quantas coisas nos impedimos de fazer por não nos acharmos excecionais o suficiente e quantas coisas fazemos, indiscriminadamente, porque somos viciados na excecionalidade?

Doí na alma a dificuldade de acesso aos rituais de pertença, ao conhecimento vivo, local e contextual, passado de geração em geração, as bênçãos para as travessias duras e sinuosas da vida: o nascimento, a morte, a perda, a guerra, o conflito, as grandes viagens, aventuras, as transições de vida e por aí fora.  Rituais são estruturas coletivas intemporais que trazem as durezas e as catástrofes para o comum do dia-a-dia, a doce tragédia de estar vivo num planeta cheio de mistérios e imprevisibilidades.

Os rituais de pertença fazem com que homens, mulheres e crianças enfrentem a incerteza com a segurança da tribo que não se reduz apenas a pessoas vivas, mas à presença dos ancestrais, espíritos do lugar, entidades cósmicas e da própria terra viva com toda a diversidade de relações. O individuo e a sua experiência tem muito pouco de individual.

Órfã de seus rituais, a modernidade foi lentamente convencendo-se de que para pertencer precisa de se destacar, de ser boa, única, excecional. Este é o grande mote do capitalismo extrativista, ser o melhor, estar em constante crescimento e almejar sempre mais alto.

As consequências do endeusamento da excecionalidade são várias, por exemplo: perda de imunidade à traumatização, ficamos muito mais frágeis e suscetíveis às dificuldades da vida porque qualquer coisa que mexa com a nossas capacidades e valor mexe com o nosso sentido de merecimento, e logo com o nosso sistema de vínculo, que influencia diretamente com a nossa capacidade de conexão, logo com o nosso sentido de pertença.

Pertencer é mais que um direito é intrínseco.

Existimos, pertencemos.

Mas não é essa a mensagem que vivemos, até pode ser a que ouvimos, mas ouvir é diferente de experienciar. Doenças, crises, fragilidades, envelhecimento, mortes, são sentidas pela nossa cultura como ataques diretos à nossa identidade. Quem sou eu se já não sou capaz, se em vez de crescer e superar sou convidado a encolher e ficar?

A excecionalidade não é assim tão agradável quando ficamos sozinhos no escuro a braços com eventos demasiado grandes para serem compostados pelos nossos pequenos corpos.

Quem somos nós quando a alma nos leva às peregrinações escuras das cavernas mais profundas? Quando ficamos frente a frente com os segredos que a consciência se esforçou tanto para proteger?

A etimologia da palavra identidade vem do latim (Idem) que significa o mesmo e (dade), indicador de um estado ou qualidade, a qualidade do que é o mesmo ou semelhante. Construímos a nossa identidade através daquilo com que nos identificamos. Os rituais de pertença sejam eles para celebrar transições, lutos ou iniciações são placentas de construção de consciência polimórfica que atravessa passado, presente, futuro e vários paradoxos. Auxilia a resiliência às grandes travessias propostas pela vida. Não é a excecionalidade que alimenta a complexidade que somos mas sim a identificação com o chão comum que todos pisamos,  as travessias lutos e iniciações pelas quais passamos. A certeza impressa nos ossos que não estamos sozinhos nas desgraças, apesar da grande diversidade e originalidade de corpo para corpo, a experiência de estar vivo é transversal a todos os organismos vivos.

A excecionalidade não sobrevive nos terrenos pantanosos da alma. Precisamos de alma mais do que tudo nestes tempos e talvez um dos caminhos para conjugar o verbo “almar” seja mesmo abandonar o vício da excecionalidade pelo menos dentro do que for possível na malha apertada da modernidade.

Eu e a colega e colunista Ana Sevinate vamos facilitar um circulo de luto em Outubro no espaço Heart em Sintra, mais informações no link.

Para citar este artigo:

ALPANDE, Ana. O Vício da Excepcionalidade. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-54/o-vicio-da-excepcionalidade/, número 54, 2024

A excecionalidade não sobrevive nos terrenos pantanosos da alma. Precisamos de alma mais do que tudo nestes tempos e talvez um dos caminhos para conjugar o verbo “almar” seja mesmo abandonar o vício da excecionalidade pelo menos dentro do que for possível na malha apertada da modernidade.

Ana Alpande

Ana Alpande

Colunista e Autora regular da Revista

Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias

A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.

Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.

O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.

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