Biografia dos Dias sem Princípio

Coluna de Inês Peceguina

4 MIN DE LEITURA | Revista 53

Mãos

 

{Parte I} Parte 2

 

Sobem os dedos. Tocam na cara. O indicador, o médio, o anelar. Um, dois, três. O mindinho estica-se. A seguir viajam até à parte de trás da cabeça. Nuca. Ai apanham um coletivo de cabelos e enrolam-se. Um, dois, três, quatro. Os dedos alongam-se. Chegam-se para a frente, as mãos, percorrem a testa ainda sem rugas visíveis. Depois voltam ao início. E repetem. Repetem. Repetem-se.

Outras mãos: Contam os dedos. Uma e outra e outra vez.

Outras mãos: O dedo indicador puxa a pele ao lado da unha do polegar.

Outras mãos: O dedo indicador esfrega a base do polegar.

Outras mãos: Tapam e destapam uma caneta. Fecham e voltam a abrir a tampa de um objeto qualquer. Ou qualquer coisa que emite um som. Estalido. Evidência de existência do lado de fora.

Uma mão lava a outra.

Uma mão lava a outra.

Uma mão lava a outra.

Uma mão lava a outra.

Uma mão lava a outra.

      purga ao pecado

Ao que parece, a compulsão de lavagem das mãos é uma procura de redenção moral (Zhong & Liljenquist, 2006). E há sempre um ritmo, como uma oração.

Em todas estas mãos há um ritmo. Em todas estas mãos há um ímpeto, uma gritaria.

Fazemos de conta que não é evidente o sofrimento deste desapego aos lugares e aos outros que fazem parte dos lugares e que estão ali. Ali mesmo.

Fazemos de conta que o verniz que sabe horrível chega para resolver as unhas que se roem, onicofagia, o nome técnico. A investigação sobre este comportamento sugere que a necessidade de roer e porventura comer as unhas está associada a um estado psicoemocional de ansiedade (Pelc & Jaworek, 2003). E também parece existir um ritmo ou ritual nesse processo de roer as unhas, ou pelo menos entre as pessoas que foram observadas enquanto participantes do estudo que a seguir se refere. Malone e Massler (1952) reportaram que o comportamento de roer as unhas segue habitualmente uma sequência de quatro posturas distintas:

(1) as mãos são colocadas próximas à boca e ali ficam durante alguns segundos a meio minuto;

(2) os dedos batem rapidamente nos dentes da frente;

(3) seguem-se uma série de mordidas espasmódicas, rápidas, com as unhas a pressionar com firmeza a parte cortante dos dentes, por fim;

(4) o dedo é retirado da boca, seja para inspeção visual ou para ser sentido por outro dedo, por palpação.

As mãos não são apenas um suporte importante à linguagem verbal na sua expressão oral. As mãos não dizem apenas do passado mais ou menos recente. As horas passadas a lavar loiça, a velocidade do vento. O contacto habitual com os elementos, ou a ausência total dos elementos, o mais possível.

Alguma investigação sobre a evolução da linguagem sugere nos sugere que a sua origem terá sido exatamente nas mãos. A linguagem, propõem, começou como gesto (e.g., Cooperrider, 2020; Fay et al., 2022). O que agora fazemos com a língua, dentes e lábios, indicam, fazíamos originalmente com os braços, mãos e dedos. A primeira evidência que apoia esta ligação entre a mão e a boca começa cedo no desenvolvimento. Logo no útero, muitos bebés chucham no seu dedo polegar. E pouco tempo depois do nascimento, até aproximadamente aos 5 meses, exibem um reflexo conhecido como reflexo de Babkin: se lhes fizermos pressão nas palmas das mãos, abrem a boca, por vezes deitam a língua de fora, fletindo os braços em simultâneo. As áreas neuronais que controlam os movimentos da boca estão, estranhamente, ou nem por isso, afinal, muito próximas daquelas que controlam os movimentos das mãos, o que indica a possibilidade de existir um circuito de comado comum. Evidências recentes sugerem que estas áreas não são apenas próximas mas, de facto, integradas (Feldman & Narayanan, 2004).

Quanto mais avança o comboio, quanto mais avançam os dias, e avançam com eles os modos de existir do mundo onde eu vivo, mais evidente é que alguma coisa importante vai ficando para trás. As mãos continuam a falar. As mãos, diria, muitas mãos, falam muito alto. Gritam. Num desenho continuado a dizer que fazem parte de um corpo e que esse corpo faz parte de um corpo maior. Que a comunicação para dentro não é comunicação porque não põe nada em comum. E não existe ninguém com quem se possa comunicar. E as mãos sabem disso. Resistem ainda. Com se procurassem a ajuda dos seus antepassados. No tempo em que falávamos apenas com as mãos. Triste que presos aos mundos onde parece que tudo existe para sempre, não consigamos ouvir. Ouvir-nos. Triste que tantas pessoas tenham deixado de ouvir as histórias das suas mãos. Tal como a linguagem verbal, é possível que o epicentro da comunicação através do gesto, e em particular, através das mãos, seja o de desenvolver os fios invisíveis que nos ligam ao outro. Aos outros. E sem os quais, pelo menos durante alguns momentos das nossas vidas, não conseguimos mesmo viver (Dunbar, 1996).

Talvez comece sempre por ser uma necessidade de mapeamento do mundo interno, por sua vez desenhado a partir dos espelhos, as interações com os primeiros humanos significativos onde fomos parar nesse momento mágico-trágico da existência. O mundo dos afetos. O mundo da pertença. Uma mão pode lavar a outra. Uma mão pode segurar a outra. Temos duas. Mas uma mão, ou a outra mão, sem a mão de outro ou outra, fora de nós, não consegue fazer cócegas.

Não sei das outras pessoas que esperam pelo comboio e que como eu, dotadas de uma sabedoria secreta, sabem das probabilidades de encontrar um lugar vazio.

Eu, preciso de uma mãozinha. Que não seja a minha.

E preciso às vezes de um empurrão, ou das mãos que me parem.

Que me amparem.

Não vá eu adormecer no comboio e deixar-me cair e ninguém ter mão para me segurar.

Referências bibliográficas

  • American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (Revised 5th ed.). American Psychiatric Publishing.
  • Cooperrider, K. (2020, July). If language began in the hands, why did it ever leave?  Aeon. https://aeon.co/essays/if-language-began-in-the-hands-why-did-it-ever-leave
  • Dunbar, R. (1996). Grooming, gossip, and the evolution of language. Harvard University Press. 
  • Fay, N., Walker, B., Ellison, T. M., Blundell, Z., De Kleine, N., Garde, M., Lister, C. J., & Goldin-Meadow, S. (2022). Gesture is the primary modality for language creation. Proc. R. Soc. B. 28920220066. http://doi.org/10.1098/rspb.2022.0066
  • Feldman, J., & Narayanan, S. (2004). Embodied meaning in a neural theory of language. Brain and Language, 89, 385-392. http://doi.org/doi:10.1016/S0093-934X(03)00355-9
  • Han, B. C. (2018). A expulsão do outro – Sociedade, Perceção e comunicação hoje. Relógio de Água.
  • Han, B. C. (2020). Morte e alteridade. Vozes.
  • Malone, A. J., & Massler, M. (1952). Index of nailbiting in children. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 47, 193-202. https://doi.org/10.1037/h0060287
  • Morrison, T. (2004). Beloved. Vintage.
  • Pelc, A. W., & Jaworek, A. K. (2003). Onychofagia jako problem interdyscyplinarny [Interdisciplinary approach to onychophagia]. Przeglad lekarski, 60, 737-739.
  • Treadway, M. T. & Zald, D. H. (2011). Reconsidering anhedonia in depression: Lessons from translational neuroscience. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 35, 537-555. https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2010.06.006.
  • Zhong, C. B., & Liljenquist, K. (2006). Washing away your sins: Threatened morality and physical cleansing. Science, 313, 1451-1452. http://doi.org/10.1126/science.1130726

 

Para citar este artigo:

PECEGUINA, Inês. Mãos – parte II. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-53/maos-parte-2 , número 53, 2024

As mãos continuam a falar. As mãos, diria, muitas mãos, falam muito alto. Gritam. Num desenho continuado a dizer que fazem parte de um corpo e que esse corpo faz parte de um corpo maior. Que a comunicação para dentro não é comunicação porque não põe nada em comum. E não existe ninguém com quem se possa comunicar. E as mãos sabem disso. Resistem ainda. Com se procurassem a ajuda dos seus antepassados. No tempo em que falávamos apenas com as mãos. Triste que presos aos mundos onde parece que tudo existe para sempre, não consigamos ouvir. Ouvir-nos. Triste que tantas pessoas tenham deixado de ouvir as histórias das suas mãos. Tal como a linguagem verbal, é possível que o epicentro da comunicação através do gesto, e em particular, através das mãos, seja o de desenvolver os fios invisíveis que nos ligam ao outro. Aos outros.

Inês Peceguina

Inês Peceguina

PhD em Psicologia do Desenvolvimento e Pós-Doutoramento em Psicologia da Educação

Pessoa que se intriga.
Investigadora no Centro de Estudos e Pesquisa, da Operação Nariz Vermelho.
Com deambulações pelos territórios da Psicologia e da Educação.
Quase 12 anos de experiência no papel de mãe, a cometer os erros clássicos e mais alguns.
Pessoa que se encontra na escrita e que às vezes na escrita encontra o outro.
Bailarina de fim-de-dia e atleta de nascer do sol.