O Cântico dos Cânticos

Coluna de Amala Oliveira

3 MIN DE LEITURA | Revista 52

Segredos Obscuros De Eros Insatisfeito

 

Viva a liberdade sexual! Considerando os últimos séculos, nunca como hoje foi tão fácil para uma mulher viver o seu corpo e a sua intimidade de forma livre, podendo escolher parcerias e dizer sim ou não mediante a sua exclusiva vontade, sem as assombrações da gravidez indesejada, do casamento forçado ou da punição segregadora (generalizando e falando de nós, as privilegiadas ocidentais, pois o tema da condição sexual feminina no mundo é tema para longas e amargas dissertações). Porém, revelam-se agora os vastos desertos áridos do prazer e da libido da mulher.

Atravessamos uma epidemia erótica silenciosa, invisível ao olhar da sociedade tão pretensamente liberal e tremendamente sexualizada, onde se sofre baixinho, se acomodam amores confortáveis ou violentos, luxúrias sofríveis, exposições danosas e desalentos de coração. Cujas contas se pagam em saúde física e mental.

Muitas de nós – principalmente as mais jovens, algumas meninas ainda – procuram a sensualidade erótica como uma forma de validação e os conteúdos quase pornográficos nas redes sociais transbordam. É fundamental perceber quando se trata de uma expressão de liberdade e empoderamento feminino ou mais uma forma de exploração e objectificação sexual.

A hipersexualização massiva assalta-nos, reforça estereótipos e restringe autonomia, reflectindo-se em auto-estimas fragilizadas, crises de ansiedade, transtornos alimentares, dependência emocional e relacionamentos abusivos. Por outro lado, vivemos um retrocesso nos direitos femininos sobre o nosso próprio corpo, liberdade de ser e de viver. Como encontrar-se a si mesma no meio de tantos enredos?

São muitas as apps de encontros, para variados gostos e feitios, onde podemos (finalmente!) satisfazer as nossas fantasias, explorar facetas eróticas e viver o sexo em pleno sem os laços do compromisso. Muitas de nós encontram prazer, afirmação pessoal, libertação de trauma e até amor verdadeiro por estas vias. Outras de nós veem-se enleadas em teias de expectativas, julgamentos e sonhos desfeitos, onde a super-mulher-sexual-liberal que nos é vendida – com medidas e tudo para fazermos caber os nossos corpos e desejos – não traz satisfação nem revela o prometido Éden de Eros.

Vivemos numa aparente contradição, em relações sexualmente pouco satisfatórias a bem do amor, da relação, dos confortos económicos, familiares e sociais que a convenção dita (quem sabe vivendo romances extraconjugais ou fantasiando com isso) ou reivindicando o ser-se mulher livre e amar muito, desbravando prazeres e paraísos tórridos com amantes em mil e uma noites de delícias, mesmo com a solidão que por vezes espreita pelos lençóis.

Em qualquer um destes cenários (de entre outros tantos tons na paleta), há uma moléstia que teima em perseverar: a insatisfação que vive nos ermos da ligação erótica e sexual. Ou não fossemos nós as ávidas consumidoras de romances eróticos.

Convenhamos então que o problema não está no sexo per se. Ou na forma-expressão dos corpos. Nas muitas mulheres com quem tenho trabalhado ao longo dos anos, encontro o mesmo padrão de incapacidade de entrega ao sexo e desfrute do seu próprio prazer. São milhares de anos de programação nefasta que infecta o corpo, vozes sombrias que ditam regras, proibições, limites e julgamentos, saindo do próprio útero. O não merecimento, a não permissão, o medo de perder o controlo e da punição iminente, o não ser suficiente no corpo ou na conduta, o abandono e a humilhação, a necessidade de permanecer no papel de cuidadora, doadora abnegada de si, a “boa mulher, mãe dedicada, esposa amorosa”. Acrescentemos os títulos modernos de “profissional responsável”, “mulher de armas”, “de corpo perfeito” e outras tantas condecorações na farda. O sentido é sempre o mesmo – de dentro para fora. Dar, prover, validar. E este movimento perpétuo esgota-nos, dissocia-nos e seca-nos a fonte do desejo.

No nosso afã feminino de nos encaixarmos nas expectativas alheias e tudo cuidar, a tudo acudir, de assumir a responsabilidade por mediar e servir, a mera possibilidade de nos “servirmos” a nós mesmas pode revelar-se egoísta, revestida de culpa e impraticável. Porém, para que uma mulher se possa abrir ao prazer e ao desfrute honesto do seu corpo, a atenção deverá concentrar-se totalmente em si, sendo ela mesma o foco do cuidado e consideração que sempre direcciona para fora. Sem culpa, sem medos, sem vergonha, sem querer corresponder a outrem, sem precisar de validação. Precisa de “morrer” para o mundo para que dentro de si se abra o universo.

Como podemos entregar-nos à Morte quando estamos tão conectadas à Vida? Como dar-nos permissão para falecer um pouco, parando a realidade na sua rotação para uns instantes de êxtase privado e sincero? Precisamos de NOS colocar na prioridade da cama e isso requer coragem, verdade, bom humor, entrega e leveza. E uma boa dose de paciência também. São muitos, demasiados os pregões sociais e as imposições colectivas que nos estreitam.

Vamos irmãs. Pereçamos para “os outros” e entremos no vórtice de silêncio orgásmico que nos eleva, regenera e sublima. Por todas nós.

Para citar este artigo:

OLIVEIRA, Amala. Segredos Obscuros de Eros Insatisfeito. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-52/segredos-obscuros-de-eros-insatisfeito, número 52, 2024

Como podemos entregar-nos à Morte quando estamos tão conectadas à Vida? Como dar-nos permissão para falecer um pouco, parando a realidade na sua rotação para uns instantes de êxtase privado e sincero? Precisamos de NOS colocar na prioridade da cama e isso requer coragem, verdade, bom humor, entrega e leveza. E uma boa dose de paciência também. São muitos, demasiados os pregões sociais e as imposições colectivas que nos estreitam.

Amala Oliveira

Amala Oliveira

Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator

Sou Sacerdotisa e Erotisa, Sexological Bodyworker e Sacred Sex Educator, pioneira da Sexualidade Sagrada em Portugal, vivendo-a e partilhando-a como um caminho de devoção, cura e revelação.
Investigo o Paganismo e Xamanismo Ibéricos, tendo sido iniciada na Bruxaria Tradicional Portuguesa pela minha mãe. Sou Buscadora de Visão, Temazcalera e Guardiã de Fogo Sagrado pela linhagem da Abuela Margarita.
Herbalista aprendiz do mestre alquimista Juan Plantas nas plantas mágicas e medicinais da Península Ibérica, sou a fundadora do projecto SAGRAR e autora do Oráculo dos Animais da Península Ibérica.