Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

2 MIN DE LEITURA | Revista 52

Reinventar a Vida!

A internet, assim como o trabalho remoto e a tecnologia do WhatsApp, têm apagado todas as fronteiras que delimitavam saudavelmente as dimensões do trabalho e da vida. Trabalhar hoje tornou-se um verbo imperativo, que tem sobrepujado o verbo viver e existir. A vida está sendo, a cada dia, esprimida, reduzida, confinada a pequenos lapsos de experiência. Capturada, ela se automatiza.

Logicamente isso não se dá sem um processo de produção de subjetividades, altamente inteligente, que trabalha nas entrelinhas da consciência, seguindo as pegadas do inconsciente, sob o campo dos desejos. Há um deslocamento sutil entre o poder coercitivo que se situava fora de nós, e sobre nós se exercia, para um poder coercitivo que se faz a partir de dentro de nós, de forma volitiva e colaborativa. O filósofo coreano Han denomina esse processo de servidão voluntária, porque se dá como uma autoexploração. Isso é sustentado através de imagens-referência: a falta de tempo, hoje, é símbolo de ostentação. Não ter tempo é ter status.

Esse cenário descortina uma nova relação de poder, porque há outras forças atravessando o humano. O desempenho assim como a produtividade são ideários que despontam como condições de realização dos desejos. O trabalho, desmedido, se prolonga sobre todas as esferas, ambientes e horas da vida. Diante das telas/écrans nunca sabemos ao certo quando estamos apenas trabalhando, ou também nos divertindo, jogando ou socialmente interagindo. Essa linha tênue aumenta nossa tolerância.

Nesse horizonte, a Vida passa a estar a serviço do sistema. O que está em jogo não é apenas o trabalho e suas métricas, mas um ideário de desempenho que vem se tornando um modelo prescritivo. A Vida sucumbe.

O cansaço, que não se regenera mais nos momentos de descanso – porque se dá em lapsos forjados por um projeto que visa sempre cansar -, tornou-se uma forma de existir. É um cansaço fundamental que nos coloca em uma condição onde estamos fadados a falhar, seja em nossa vida profissional, seja em nossas relações afetivas mais preciosas: simplesmente não encontramos tempo para cuidar de nós, nem de nossos amores, nem de acompanhá-los no cotidiano do existir.

Diante desse contexto, que é macro e, ao mesmo tempo, micropolítico, há dois verbos que precisamos resgatar e praticar, que são relacionais: escolher e decidir! Eles constituem ferramentas poderosas no processo de recaptura da Vida, que foi sequestrada.

Em meio a tantas informações, que sempre nos chegam como possibilidades, a nossa capacidade seletiva precisa voltar a entrar em ação, seja para estabelecer novamente prioridades, seja para que saibamos delimitar o que, de fato, nos importa, daquilo que nada nos vale. Então, saber escolher é uma prática de cuidado de si muito importante.

A segunda ferramenta é a decisão. Ou seja, diante daquilo que nos importa e das prioridades que estabelecemos para nós, precisamos aprender a dizer NÃO para tudo o que não compõe/dialoga e se entretece com nossos desejos e missão de alma, assim como precisamos aprender a dizer SIM para tudo o que compõe, dialoga e entretece com nossos desejos, nossa missão de alma e nossos afetos. Dizer não já implica em dizer sim, e dizer sim, de alguma forma, implica em dizer não.

Nessa jornada, que não está dada e nem nos é fácil, os desejos são uma chave importante, porque eles nos aproximam das formações do inconsciente que, por sua vez, predeterminam o campo de nossas escolhas, de nossas falas, de nossas ações no mundo. Em última instância, sempre seguimos a pulsão de nossos desejos. Orientá-los e reorientá-los é um trabalho importante de ecopsicologia. Um ativismo sem reorientação dos desejos constitui um campo aberto para novas capturas e modelizações. Singularizar-se é trabalho árduo e revolucionário, onde se fecunda as sementes de transformação: a vida se encontra disponível nesse entremeio.

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Reinventar a Vida. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-52/reinventar-a-vida/?, número 52, 2024

Esse cenário descortina uma nova relação de poder, porque há outras forças atravessando o humano.  O desempenho assim como a produtividade são ideários que despontam como condições de realização dos desejos. O trabalho, desmedido, se prolonga sobre todas as esferas, ambientes e horas da vida. Diante das telas/écrans nunca sabemos ao certo quando estamos apenas trabalhando, ou também nos divertindo, jogando ou socialmente interagindo. Essa linha tênue aumenta nossa tolerância.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

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