Estórias Simples

Coluna de Patrícia Rosa-Mendes

5 MIN DE LEITURA | Revista 52

Peregrinação

 

“Através dos ramos vazios pode ver

o céu que tu tens para respirar;

sê terra agora e canção do entardecer

e país onde ele tenha lugar.

Tem agora como uma coisa a humildade,

Amadurecida para a realidade,

Para que Aquele que foi anunciado

Te sinta quando fores por ele tomado.”

Rainer Maria Rilke, O Livro da Peregrinação

 

Fui a única criança numa família de pessoas adultas, muitas delas antigas, de corpo e de mente, e as minhas companhias de infância eram habitantes de outros mundos. No mundo exterior, os mais-que-humanos, animais, plantas, pedras, com quem partilhei incontáveis estórias e confissões, a quem observei horas sem fim, a quem sufoquei de abraços e beijos, mantas enroladas e embalos constantes. No mundo interno, incontáveis personagens, mais ou menos reais, que se passeavam pelo meu universo pessoal, em aventuras e epopeias, em relações imaginadas e diálogos intermináveis. Tudo isto, desde o quarto andar de uma rua movimentada no centro de Lisboa, dos quintais que ainda existiam nas traseiras dos prédios, do pequeno jardim de vasos no patamar da porta de entrada, mesmo por debaixo da claraboia e dos intermináveis dias de verão, em casa de familiares, ao longo do país.

 

O mês passado, passei alguns dias a trabalho na zona onde nasci e cresci, zona onde já a minha mãe tinha nascido e crescido, ruas pelas quais andei diariamente, durante 23 anos. Estranhei-me, ao ver-me tão tocada por regressar aquele lugar; senti-me a regressar a outra época, e dei por mim a regressar a lugares internos que já não visitava há muito, muito tempo.

Percebi então o meu lugar de introvertida. Ao longo do meu crescimento, as minhas vivências internas são de uma grande proporção; enquanto caminhava por aquelas ruas, caminhava também pelos meus medos pessoais, atravessava os desafios que me eram colocados diariamente, peregrinava pelo meu crescimento.

As alegrias que sentia, ia-as vivendo dentro, partilhadas apenas comigo e com os pardais das avenidas, com as árvores que cresciam nos jardins ou sombreavam as pedras das calçadas. Os medos, vivi-os sozinha, confessei-os apenas dentro de mim, sabendo que os humanos de fora os iriam ridicularizar ou desvalorizar. Cada uma daquelas ruas, cada prédio, cada esquina, vivi-o também por dentro, com tanta intensidade. As perguntas que me fiz, as dúvidas existenciais ou as revoluções da adolescência, aconteceram nos trilhos da minha psique, abalaram as paredes do meu coração, e também se cruzaram em cada metro quadrado daquele lugar onde nasci e vivi.

 

Também vivi por fora, nas conversas com as amigas, a ir e vir para a escola, paradas na esquina durante horas, a fazer render a conversa para não ir para casa, para desfrutarmos um pouco mais da companhia umas das outras, ou para evitarmos o ambiente mais pesado de algumas fases familiares. Ou quando comecei a sair à noite, a ganhar mais liberdade, e os percursos eram feitos a pé, muitas vezes em grandes distâncias, com a sensação de que embarcava em aventuras dignas dos heróis antigos, enfrentando perigos, monstros e dragões, e conquistando coragem e audácia, independência e autonomia. Tímida e metida comigo, cada saída à rua, fosse para fazer um recado, fosse para ir para casa de amigas brincar ou conversar, assumia proporções de travessia. Aqueles lugares, as suas construções e o mundo natural que está presente, foram a minha companhia.

 

E ponho-me a pensar que “relação” é algo muito mais abrangente do que o conceito comum parece significar. Se, enquanto criança, conversava com as formigas e as ervas, na adolescência os diálogos eram outros. Ainda assim, não busquei um retorno ou uma utilidade em nenhuma destas fases.

O que estava presente era a minha companhia, as testemunhas do meu ser profundo, do seu crescimento, cheio de questões, de reflexões, de mágoas e de sonhos. Não tive consciência de nada disto, a não ser agora, que regressei com outra visão. Ao longo dos primeiros dezasseis anos da minha vida, senti-me frequentemente só, mas agora percebo que nunca o estive, realmente.

Mesmo no centro da capital, os pequenos nichos de vida mais-que-humana foram constantes testemunhas do meu ser, e nesta paisagem ficou guardada a minha memória pessoal. Hoje, num sítio diferente, menos urbano, tenho vindo a abrir espaço para relações mais amplas, agora com outra consciência, desconstruindo com doses variadas de dificuldade e persistência, a ideia da utilidade, da organização decorativa e da posse.

 

Rodeio-me de plantas pelo prazer da sua companhia (sim, e até aí parece haver um resquício de utilidade), tal como a dos animais que habitam a minha casa, sejam os que fui buscar, seja os que já habitavam aquele lugar antes de mim. A sua existência parece-me sempre milagrosa, uma descoberta a cada manhã quando abro as portadas da janela, que me enche de uma alegria simples e genuína. Passei a pensar em como os posso servir a eles, como lhes posso propiciar espaços seguros e nutridores, alguns metros quadrados de santuário. Afinal, também eles me sustêm, também eles me trazem inúmeras dádivas e são testemunhas do meu ser, em constante transformação. E pergunto-me quanto dessa transformação não se deve a eles, à sua presença. Parece pouco, não é, a questão de estar presente? Parece que é só estar ali, e nada está a acontecer… e, numa camada mais profunda, velada à mente concreta do dia-a-dia, algo acontece que nos conecta: a nós e à terra, a todas as formas de vida que aí existem.

 

Para além de expandir a minha noção de relação, para lá da abertura afectiva e sensível que vai acontecendo no meu coração, o que também descobri é que ao caminhar pela paisagem exterior ao mesmo tempo que, internamente, me vou descobrindo, estou a deixar partes de mim embebidas no lugar, e estou a trazer para dentro de mim o lugar que habito.  As tradições indígenas já usavam esta forma de guardar a sua memória e conhecimento sobre as terras das quais são parte: através das canções, das estórias, das danças, dos rituais e dos mitos, fizeram o seu acervo cultural, criaram os seus bancos de informação extensa e profunda, sobre o lugar que habitavam, e todos os seus parentes. E através dessas mesmas estórias, canções, danças, mitos e rituais, podiam aceder à vastíssima sabedoria em qualquer época.

Os Aborígenes, os antigos gregos, os modernos “memorizadores”, todos usam uma ou outra forma de memorizar caminhando, declamando, cantando. As investigações recentes em neurologia demonstram que a aprendizagem é eficaz quando alternamos tempos de concentração e foco não muito longos, com momentos de movimento – corrida, natação, ginástica, jogos, etc – em que aquilo que a mente trabalhou pode “descer” ao corpo e ser integrado no nosso ser. O nosso corpo e psique, e o corpo da terra trabalham em conjunto para o devir constante da própria existência, e os Anciãos indígenas pelo mundo fora têm sido os grandes Guardiães dessa extensa “biblioteca” de conhecimento e sabedoria, sem qualquer necessidade de bancos de dados virtuais, limites de armazenamento nas nuvens digitais, problemas de bateria e a restante parafernália tecnológica com que nos assolamos. Talvez estejamos a complicar tudo na nossa ânsia de mais, na gula colectiva que nos impele. Em 1902, Rainer Maria Rilke, que vivia em Paris à época, escrevia à sua mulher: “A vida é algo calmo, amplo, simples. O impulso vital é pressa e perseguição. Impulso de ter a vida de imediato, totalmente, no espaço de uma hora. Disso está Paris tão cheia que, por esse motivo, está tão próxima da morte.” Acreditando colocarmo-nos acima da morte, sermos senhores de toda a criação, desligámo-nos da verdade ampla e simples do que é ser vivo. Poderemos nós abrir mão da superioridade materialista e aceitar tocar o chão, espraiar-nos como redes micelares, e regressar aos fundamentos do Ser? Poderemos nós permitirmo-nos confiar na presença, na relação, no corpo, nas estórias, nas canções, e na sabedoria visceral que temos enquanto animais humanos? Precisamos de recuperar a vida calma, ampla e simples de que nos fala Rilke; poderá ser algo tão “simples” quanto baixar ao chão, e permitir-nos a humildade da relação?

Para citar este artigo:

ROSA-MENDES, Patrícia. Peregrinação. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-52/peregrinacao, número 52, 2024

Ao longo do meu crescimento, as minhas vivências internas são de uma grande proporção; enquanto caminhava por aquelas ruas, caminhava também pelos meus medos pessoais, atravessava os desafios que me eram colocados diariamente, peregrinava pelo meu crescimento. As alegrias que sentia, ia-as vivendo dentro, partilhadas apenas comigo e com os pardais das avenidas, com as árvores que cresciam nos jardins ou sombreavam as pedras das calçadas. Os medos, vivi-os sozinha, confessei-os apenas dentro de mim, sabendo que os humanos de fora os iriam ridicularizar ou desvalorizar.

Patrícia Rosa-Mendes

Patrícia Rosa-Mendes

Terapeuta Transpessoal

Instrutora de Meditação
Formadora na EDT – Escola Transpessoal
Tradutora
Contadora de Estórias
Mitologia – Arte – Eco-psicologia

Patricia.mendes@escolatranspessoal.com