Onde mora o coração, histórias e paisagens
Coluna de Ana Sevinate
4 MIN DE LEITURA | Revista 52
O Peixe que Não Guardava Segredos
Era uma vez um peixe vidro. Não porque fosse realmente feito de vidro, mas sim porque era transparente. Completamente e totalmente transparente. Reluzente e refletor. Podiam ver-se todas as suas espinhas, todos os seus segredos e todo o conteúdo dos seus bolsos. Não tinha por onde esconder nem ideias, nem inquietudes, nem berlindes. Tinha o olhar aflito de quem se sente despido e a nu. O tempo todo. O olhar aflito de quem foi apanhado em flagrante delito. O tempo todo. O olhar aflito de quem tem que pôr tudo à mostra, mesmo que não queira. O tempo todo.
Sentia-se embaraçado por ser visto desde a sua espinha até ao fundo da sua alma de peixe vidro. Sentia-se frustrado por não poder ter segredos e por não poder guardar segredos. Sim, ninguém lhe queria contar segredos. Se os colocassem numa montra de uma rua principal de uma grande capital, o resultado seria o mesmo. Deixariam de ser segredos, tão subitamente, tão repentinamente. Todos o evitavam, convictamente e furiosamente.
Acrescia um problema grande, infame, trágico. Mesmo que ninguém quisesse partilhar segredos, mexericos ou desabafos com o peixe vidro, assim que se cruzavam com ele, por entre mares, algas e corais, era como se, de repente, se vissem a um espelho. Claro, cristalino como a água e como a verdade. Viam-se também eles a nu, por dentro, por fora e do avesso. Sim, o peixe vidro refletia tudo a quem por ele passasse, desde a espinha até à alma. Cartas de amor e lenços de assoar. Constrangimentos e contradições. Vulnerabilidades. Fragilidades. Coisas feitas de vidro e coisas feitas de cristal.
Tinha, então, o ar aflito de quem reflete tudo, mesmo que não queira. De quem vê mais do que quer, de quem sente mais do que quer e de quem sabe mais do que quer. Por vezes era como se fosse atravessado de um lado ao outro. De tal forma que ficava sem saber quais as espinhas que eram dele e quais as fragilidades que não eram. Escondia-se, então, avidamente. Atrás de uma rocha, de um coral, de uma baleia. Não era feito de vidro, mas era como se vivesse numa redoma. Fugia à aproximação de uma sombra ou ao restolhar de um som. Para poder guardar, à chave, o alcance do seu reflexo. Aquilo que mais queria era um abraço. Aquilo que mais temia era, também, um abraço.
Nos dias de corrente quente, o peixe vidro gostava de sentir as espinhas e o coração a relaxar. O conforto da temperatura. Atrevia-se a nadar cinco milímetros a mais. A estibordo e a bombordo. E foi precisamente num dia de corrente quente que deu à costa, a cinco milímetros da sua rocha, um estranho cardume. Peixes que pareciam feitos de vidro. Conseguia ver as suas espinhas, os seus corações e o conteúdo dos seus bolsos. Postais antigos, canetas “bic”, um lanche para o ratinho do estômago, uma fisga feita de ramo de oliveira. Estava maravilhado. Os seus olhos já não eram olhos de aflição, eram olhos de deslumbramento e de curiosidade. Aproximou-se, devagarinho, pé ante pé.
Eis que, ao aproximar-se, se viu refletido e viu o seu reflexo. Tinha-se, finalmente, visto ao espelho. Conseguia ver o seu bloco de notas e os berlindes coloridos que trazia nos bolsos. Os seus olhos já não eram olhos de aflição, eram olhos de reconhecimento. Via como os seus segredos se arrumavam em pequenas caixas por ordem alfabética. Via como a sua alma acendia uma luz de cada vez que os outros peixes lhe olhavam nos olhos. Via o contorno do seu corpo de peixe de vidro, barbatanas, cabeça em forma de “v”. Via onde começava e onde terminava. Conseguia sentir, à transparência, que tinha raízes e que tinha sonhos.
Foi assim que começou a nadar metros de distância. Primeiro um, depois outro, depois mais dois. Foi assim que começou a não fugir de cada vez que encontrava alguém. Apesar de ver o reflexo dos peixes, das alforrecas, dos búzios, dos mexilhões, dos camarões, das estrelas do mar, dos cavalos marinhos, sabia agora que a barbatana às riscas era do peixe palhaço e não sua. Que a personalidade eletrizante era da alforreca e não sua. Que o ouvido aguçado era do búzio e não seu. Que a tristeza de ser aquele a quem tudo acontece é do mexilhão e não sua. Que o orgulho em ser cor-de-rosa era do camarão e não seu. Que a família que vivia no céu da noite era da estrela do mar e não sua. Que a grande enciclopédia dos contos de fadas era do cavalo marinho e não sua.
Foi assim que, todos eles, começaram a não evitar o peixe vidro. Pelo contrário, procuravam-no. Viam-se, assim, refletidos e viam o seu reflexo. Com princípio e com fim e com centro também. Porque o peixe vidro sabia agora onde ele, e aqueles que refletia, começavam e onde ele, e aqueles que refletia, terminavam. Conseguia também ajudá-los a compreenderem o que viam. Conseguia devolver-lhe aquilo que tinham de mais bem escondido e esquecido. Conseguia ajudá-los a deslumbrarem-se com o que viam. Com o que era feito de vidro e feito de cristal. E foi assim que o peixe vidro tinha aprendido a guardar segredos. Incluindo os seus. Tinha compreendido que haviam segredos que não eram dele.
Com o tempo foi-se aproximando mais e mais. Do peixe palhaço, da alforreca, do búzio, do mexilhão, do camarão, da estrela do mar, do cavalo marinho. E foi assim que o peixe vidro passou a dar e a receber abraços. Sabendo que não perderia espinhas nem berlindes por abraçar. Sabendo que por senti-los não ficaria cor-de-rosa como o camarão ou às riscas como o peixe palhaço. Sabendo que poderia sentir a tristeza com o mexilhão sem ter que a levar consigo. Dava até mesmo abraços à alforreca. Sabendo que não poderia esquecer-se de colocar o creme para a urticária.
Para citar este artigo:
SEVINATE, Ana. O Peixe que Não Guardava Segredos. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-52/o-peixe-que-nao-guardava-segredos/, número 52, 2024
Nos dias de corrente quente, o peixe vidro gostava de sentir as espinhas e o coração a relaxar. O conforto da temperatura. Atrevia-se a nadar cinco milímetros a mais. A estibordo e a bombordo. E foi precisamente num dia de corrente quente que deu à costa, a cinco milímetros da sua rocha, um estranho cardume. Peixes que pareciam feitos de vidro. Conseguia ver as suas espinhas, os seus corações e o conteúdo dos seus bolsos. Postais antigos, canetas “bic”, um lanche para o ratinho do estômago, uma fisga feita de ramo de oliveira. Estava maravilhado. Os seus olhos já não eram olhos de aflição, eram olhos de deslumbramento e de curiosidade. Aproximou-se, devagarinho, pé ante pé.
Ana Sevinate
Psicóloga clínica e psicoterapeuta
Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida.
Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.
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