artigo de Maria Trincão Maia

Mistérios da Salvação

4 MIN DE LEITURA | Revista 52

O tipo de documentários que mais gosto de ver são os que se relacionam com seitas. Existe um fascínio sobre quem vai para uma seita, como vai, como o processo sucede e quem é o líder. O primeiro documentário que vi a este respeito foi o de Osho, confesso que tentei ler um livro de Osho e não gostei. Na altura procurava trabalhar a minha intuição, e ele tinha um livro sobre isso e li, mas algo me incomodava profundamente na sua abordagem, arrumei-o e nunca mais lhe peguei. Só muitos anos depois saiu na Netflix o documentário sobre Osho, Wild, Wild, Country. Aconselho a ver, para quem ainda usa chavões de Osho aconselho ainda mais.

Existe uma mania ocidental de separar o homem da obra, e sim estou a falar de homem mesmo, macho, porque normalmente é um homem que temos que separar da sua obra. Temos que fechar os olhos a muitos defeitos de caracter para apreciarmos as obras de muitos autores, não interessa que Picasso fosse um conhecido misógino, que roubou o cubismo da arte africana, o que interessa é a obra que ele deixou. Não interessa os gostos pedófilos de Lewis Carroll o que interessa é a Alice. “Ah mais tens de pôr cada homem no seu tempo”. Não interessa que Leonardo Di Caprio seja conhecido por não querer mulheres com mais de 26 anos, o que interessa é o trabalho dele como actor. E senão fosse Kevin Spacy apanhado no movimento #metoo nada interessava do que ele tivesse feito. Esta necessidade de separar a arte do homem para que ela possa existir enquanto ser quase individual, à parte, não estando enraizada no ser humano, no mundo terrestre. Pondo sempre estas figuras num patamar super-humano para que nunca se questione nada e os possamos louvar.

Somos ensinados desde de sempre a ser assim. D. Afonso Henriques era um sanguinário, um chefe de um bando de ladrões, diz Paulo Moura num artigo de Público a 8 de Julho de 2008. No limite um matricida que destronou a Mãe envolvendo-a numa teia de mentiras. Gosto sempre de imaginar o que seria se começássemos a história de Portugal com uma Rainha.

Assim continua a vender-se livros de Osho, a fazer referência a Osho, porque na verdade ele é um ser especial, um enviado de algo que está acima de nós. E nós gostamos disso, alguém que nos venha dizer como viver e o que está certo ou errado. Precisámos da igreja católica durante anos para nos validar, entre o ir para o céu e o ir para inferno. Tudo acima de nós, tudo mistérios que não conhecemos. “Mistérios da Salvação”. Que não somos capazes de compreender, então abre espaço para salvadores. Estes enviados à Terra com missões especiais, mais as crianças arco-íris e índigo e seja o que for. Todas com missões especiais, tudo para o binómio bem-mal. A narrativa binária do bem contra o mal. De nós e os outros. Da separação. Pessoas que nos vêm ensinar a sermos iluminados, encaminhados, divinos, puros. No meio do caminho, os gurus ficam ricos, abusam sexualmente de mulheres, e homens também, abusam psicologicamente e abusam fisicamente. Causam danos irreparáveis na psique dos seguidores. Comumente nos documentários ouvimos quem saí de uma seita o quão difícil é voltar para a sociedade e não ter ninguém para nos dizer o que fazer, o que pensar, o que está certo e o que está errado. Os gurus tiram todo o senso individual, porque o ego individual (vulgo sentido crítico) é o alvo a abater. E se tens dúvidas é porque não estás preparado. Se não acreditas é porque não és digno. Uma vez, há muitos anos, no momento de grande fragilidade minha, alguém me disse algo parecido: se não entendes é porque não estás preparada. Fiquei chocada.

Existem duas séries documentais muito interessantes na Netflix, Como ser um Tirano e Como ser um Líder de Culto. As semelhanças são incríveis, tão intimamente interligadas que ser tornam espetaculares. São sempre enviados de Deus ou algo correspondente, têm sempre uma missão de salvar pessoas, países o mundo e têm sempre acesso a uma informação que ninguém mais tem. E como conversam directamente com Deus (ou algo semelhante) quem mais perto está deles, mais perto está de Deus.

Houve uma mulher, este um documentário da HBO MAX, que falava directamente com Robin Williams, achei mais modesto. Foi das poucas mulheres à frente de um culto, mas acabou morta pela sua própria cura, que a deixou azul, depois de anos a tomar prata coloidal. E como os seguidores perante a fragilidade humana obrigavam-na a continuar a sua prática.

Em Portugal são mais discretos os cultos, não são tão abertos, há pouco tempo toda a gente ficou desconcertada quando veio a público o culto que vivia perto de Coimbra e que estava a ser acusado da morte e ocultação de cadáver de uma criança. Talvez os nossos gurus, nossos no sentido de serem portugueses, estejam longe de formar comunidades em espaços físicos, mas não quer dizer que não existam, não quer dizer que não estejam a fazer lavagens cerebrais, e não quer dizer que não estejam a dizer aos outros como devem viver, no conforto da sua casa. Deixando um fio de um medo invisível nos seus seguidores, para que eles nunca saiam do seu lugar, para que nunca se questionem sem primeiro sentir que não estão a fazer o seu trabalho. “Se tenho dúvidas é porque ainda não estou lá”. Esta ideia sempre que alguém tem acesso a informação que não se tem, que alguém tem uma missão especial ou que existem pessoas mais especiais que outras é o primeiro passo para um abismo.

Claro que existe todo um perfil psicossociológico para que existam pessoas com mais tendência para seguir seitas ou líderes manhosos (como dos de extrema-direita que tão bem estão ai a aparecer). Mas existe fundamentalmente nesta sociedade uma grande solidão, uma grande falta de pertença. Esquecemo-nos de que pertencemos e, no meio desta sociedade altamente individualizada, só queremos encontrar os braços de alguém que nos acolhe. Que nos faça sentir especial ou que nos faça sentir que caminhamos para algum lado. E temos medo, um medo da não salvação porque, católicos ou não, fomos educados nessa culpa cristã que nos faz uma moinha constante. O que precisamos mais do que nunca é apurarmos o sentido crítico, é olharmos para além das máscaras, das personas, ouvir o que é dito entre linhas, tanto a nível político como espiritual, como no limite o que falamos é de controlo e poder.

Então deixo as perguntas: achar que precisamos de gurus não abre a porta para achar que precisamos de ditadores? São os gurus ditadores espirituais e os ditadores gurus políticos?

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Mistérios da Salvação. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-52/misterios-da-salvacao/ ,número 52, 2024

Assim continua a vender-se livros de Osho, a fazer referência a Osho, porque na verdade ele é um ser especial, um enviado de algo que está acima de nós. E nós gostamos disso, alguém que nos venha dizer como viver e o que está certo ou errado. Precisámos da igreja católica durante anos para nos validar, entre o ir para o céu e o ir para inferno. Tudo acima de nós, tudo mistérios que não conhecemos. “Mistérios da Salvação”. Que não somos capazes de compreender, então abre espaço para salvadores. Estes enviados à Terra com missões especiais, mais as crianças arco-íris e índigo e seja o que for. Todas com missões especiais, tudo para o binómio bem-mal. A narrativa binária do bem contra o mal. De nós e os outros. Da separação. Pessoas que nos vêm ensinar a sermos iluminados, encaminhados, divinos, puros.

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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