artigo de Sofia Batalha

Astronautas Adormecidos

3 MIN DE LEITURA | Revista 52

Antes de começar, quero trazer duas imagens para alentar e suster este artigo.

  • A primeira, é a da famosa história da Bela Adormecida, no momento do seu sono envolto numa densa floresta de espinhos. 
  • A segunda, é o arquétipo, tantas vezes repetido em filmes, do Astronauta Solitário, sisudo, profundamente ferido emocionalmente pelas perdas e lutos; que aprende a lidar com a intensidade das suas emoções no frio silencioso do espaço sideral, enquanto combate monstros internos e externos. O que supera as forças cósmicas sempre num fato que o protege de ambientes inóspitos.

Estas duas imagens parecem que fazem parte de fantasias diferentes, de universos simbólicos distantes. No entanto, o que aspiro trazer são as suas membranas comuns, que tanto nos descrevem nas formas paradoxais de como seguramos o mundo.

Bela Adormecida

A primeira versão impressa d’A Bela Adormecida saiu em 1528, em Paris, num livro de romances chamado Perceforest. Sabe-se que na tradição oral estava em circulação pelo menos desde 1300, terminando a sua longa metamorfose com a versão de 1910 do conto, a que conhecemos hoje. A mais antiga variante deste conto aparece na tradição oral por volta do séc. 14, como “Troilus e Zelandina”, onde uma divindade descontente lança uma maldição sobre a jovem princesa Zelandina que a faz entrar num sono profundo. Muitos anos mais tarde, o Príncipe Troilus encontra a princesa e viola-a durante o sono. Como resultado, ela tem um filho. 

No livro dos Contos da Serpente e da Lua, segui algumas pistas eco-míticas sobre este conto, tais como: 

  • A preservação de estruturas ancestrais de registo arquetípico de práticas iniciáticas, peregrinações e sacrifícios, ou seja, rituais e cerimónias sagradas –a Bela Adormecida a picar-se no fuso e o seu sono extático.
  • O sono arrebatado e de incubação, análogo da hibernação dos ursos e do sono da donzela encantada, que se refere a práticas míticas de sonhar colectivamente e viagens xamânicas através de geografias sagradas –Aquela Que Dorme, é a sacerdotisa que cuida da transformação de todos, é a que nos sonha.
  • Na versão dos irmãos Grimm, a abelha com o seu zumbido é instrumental para despertar a donzela adormecida.
  • Há também a versão italiana da menina que entra no transe adormecido, onde é concebida por magia, pela ingestão de uma pétala da rosa, ecoando a imagem arcaica da fertilização herbal e mágica –reflectindo um tempo primevo onde os humanos ainda vinham das árvores.

Encontramos, pois, muitas pistas ecológicas na Bela Adormecida, que nos recordam da sua antiguidade mítica. Ela é uma representante áurea da natureza, filha das rosas, protegida pelos espinhos, e conhecedora da sabedoria sazonal e primal dos ursos e das abelhas. O seu sono é uma iniciação e entrega em êxtase ao território do Outro Mundo, uma metamorfose temporal, um trilhar de caminhos ancestrais e colectivos. Ela é A Que Dorme, a que se entrega e rende aos caminhos vivos do mistério, a que sonha os sonhos do mundo.

Mas, hoje em dia, com a perda da sabedoria ecossistémica ela está abandonada, vulnerável e órfã. Perdida num pesadelo labiríntico, com o mundo à deriva, sem ter quem o sonhe, pois já ninguém conhece a sua geografia mítica. O seu sonho deixou de ser participativo e integrador, num diálogo ecológico, e passou a ser profundamente dissociador, uma tentativa de fuga e esquecimento das violências sofridas.

Astronauta Solitário

Nas fantasias tecno-científicas modernas, a imagem do Astronauta solitário e perdido no espaço tornou-se comum nas narrativas de entretenimento. Ele não foi iniciado, não se picou no fuso, nem dorme, sendo apresentado como um herói que se sacrifica pelo bem da humanidade. Para ele, o sono é evitado ou mesmo doloroso. Ele controla todos os detalhes para se manter em controlo da fuga perpétua.

Mas, é exactamente aqui, que as dimensões dos dois se encontram, o Astronauta solitário e a donzela adormecida. Nas fantasias de criopreservação, o dormir é a ponte para a vasta viagem espaço-temporal, tal como o sono extático nas viagens xâmanica por geograficas míticas.

O Astronauta perdido representa o arquétipo de um homem exilado do seu corpo e emoções; sempre envolto num fato/armadura de segurança, mas que o distancia da participação sensorial -a metáfora do excepcionalismo hiper-individualista. Um homem que se sente vítima de perdas trágicas e rejeição, sem a capacidade de as lamentar ou chorar, e por isso encontra-se sozinho no espaço sideral, no seu papel de perito insensível, abandonado e impossível de resgatar, em confronto com as suas memórias e sombras.

É a partir deste espaço cósmico e onírico, que se desencadeia a cascata emocional, onde ele começa a sentir de novo, sendo encurralado pela vastidão espacial e onde as emoções reprimidas o devoram; é aqui que os monstros finalmente o digerem e o fazem chorar, uivar e gritar por todas as perdas que não podia falar ou sentir. Ainda aprisionado na categoria estática e isolada do herói, enquanto luta contra si mesmo, é neste espaço cósmico tão vazio como ensurdecedor, tão inóspito como belo, que cai de joelhos novamente. É aqui que se encontra e onde recupera a capacidade de cuidar e sentir. Longe de todos, distante da Terra.

Mas a tecnologia não substitui o Sonho

Esta pueril fantasia heróica tecno-científica, tão normalizada no sistema simbólico da cultura onde nos encontramos, é uma projecção da cultura patriarcal e colonial que a imaginou. As viagens siderais são devaneios oníricos, esboçados sobre o fundo da ilusão de controlo e superioridade da tecnologia moderna. Apesar de ser o conto da Bela Adormecida o considerado como infantil.

A Bela Adormecida abre caminho pela iniciação do fuso, do pingo de sangue, ou da menstruação, num eco ancestral de acolhimento e recolhimento à Terra. Ele foge lá para cima, dorido e pesaroso, numa demanda transcendente de salvar todos. Enquanto ela dorme tudo pára e a natureza cresce, mas enquanto ele salva tudo continua, lá longe na Terra. A dele é uma fantasia de colapso mundial, mas a dela é de regeneração, mesmo pela violação expressa nas primeiras formas do conto, que gera um bebé, símbolo de fertilidade. A Bela Adormecida faz parte de um legado animista e sazonal, o Astronauta Solitário é uma fantasia moderna, absolutista e de controle tecnológico. Ela fala de curiosidade e ele de desespero. Ela de ficar e ele de ir. Ela de rendição e ele de domínio.

Psicologicamente encontramo-nos no meio destas duas narrativas, num passo de amnésia e desvalorização da sabedoria ancestral d’Aquela Que Dorme, e na idealização de normalidade, reconhecimento e apreciação do Astronauta como o herói solitário necessário.

Continuamos a ignorar a perda da sabedoria ecossistémica, abandonando os sonhos da Terra. Idealizando sair do seu vasto corpo que nos acolhe e gera, fantasiando a salvação, enquanto a mantemos captiva e amordaçada. Perdemo-nos em pesadelos labirínticos, com o mundo em colapso, sem ter quem o sonhe. Exilando as possibilidades criativas dos sonhos colectivos. Somos como Astronautas adormecidos, que não querem acordar da sua fantasia de herói.

Mas a tecnologia nunca substituiu o sonho.

 

Para citar este artigo:

BATALHA, Sofia. Astronautas Adormecidos. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-52/astronautas-adormecidos/, número 52, 2024

Mas, hoje em dia, com a perda da sabedoria ecossistémica ela está abandonada, vulnerável e órfã. Perdida num pesadelo labiríntico, com o mundo à deriva, sem ter quem o sonhe, pois já ninguém conhece a sua geografia mítica. O seu sonho deixou de ser participativo e integrador, num diálogo ecológico, e passou a ser profundamente dissociador, uma tentativa de fuga e esquecimento das violências sofridas.

Sofia Batalha

Sofia Batalha

Eco-Mitologia e Ecopsicologia; Fundadora e Editora da Revista

Mamífera, autora, mulher-mãe, tecelã de perguntas e desmanteladora o capitalismo-global-colonial-tecnológico um dia de cada vez. Desajeitada poetiza de prosas, sem conhecimentos gramaticais. Peregrina pelas paisagens interiores e exteriores, recordando práticas antigas terrestres, em presença radical, escuta activa, ecopsicologia, arte, êxtase, e escrita.

Certificada em Ecopsicologia e Mitologia Aplicada pela Pacifica University, nos EUA. Identifico-me como pós-activista, fazendo parte do Advisory Board da The Emergence Network.

*Homenagear hystera. Recordar a capacidade de resposta. (des)aprender em conjunto.

Podcast Eco-Mitologia
Autora de 11 livros & 2 (Des)Formações
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade. Ver próximos eventos aqui.