Mitologia Criativa
Coluna de Élia Gonçalves
4 MIN DE LEITURA | Revista 52
A presença do selvagem
Existe uma grande sanação nos lugares selvagens. A maior parte dos problemas com que nos confrontamos na sociedade contemporânea, tanto a nível pessoal como cultural, resultam da separação da nossa natureza selvagem inata.
Ian Siddons Heginworth
Apesar do frio do Inverno, com as suas tempestades, trovoadas e vendavais, a contemplação do selvagem tem-se aproximado com o verão.
É uma palavra difícil de transportar, este termo “selvagem”. Talvez porque a usamos para tantos conceitos distintos, ou simplesmente porque a transformámos em algo feio e desprovido de coração. Traz-me um amargo travo, pensar que até o coração pode ter sido colonizado por conceitos, encaixes e uniformes. Assim o foi a beleza, a dança ou a forma de nos relacionarmos.
Ao longo dos anos, os lugares selvagens têm começado a ser casa, o espaço onde me lembro cada vez mais de quem sou e o peito abre sem pudor ou retração. E, talvez porque me sento tantas vezes nestes espaços de intimidade, reconheço-os nos pormenores mais subtis, numa batida de coração, nos instantes em que o ar me falta ou que o silêncio me veste sem que as palavras possam ocupar espaço.
Cresci numa praia e há muito que intuí que sou feita de mar, estrelas e grãos de areia. Mas aprendi, com as viagens e mudanças, que as paisagens nos alteram e constroem. Que a serra que observo, hoje em dia, pela janela, já se entranhou nos meus poros e o cheiro das figueiras e das alfarrobeiras também me vestiram a pele, acrescentando cor aos grãos de areia. Por vezes, pode ser difícil sentir que a paisagem me muda, me tira ou acrescenta. Que o sentir e o pensar estão sensíveis aos cheiros, ao chão que pisam, àquilo que os olhos contemplam. Pode ser assustador saber que quem sou também depende do ar que respiro e dos lugares por onde passo. Haverá algo mais selvagem do que isso?
O selvagem pode ser gritante ou subtil e, para mim, tem vindo de fininho, entrando nos mais ínfimos espaços e ganhando terreno e intimidade.
Coloco os pés no riacho para refrescar e deixo-me ficar por um bocado. Por entre a água fria que corre um pequeno cardume começa a aproximar-se, por entre o medo e a curiosidade. E, pouco a pouco, busca a proximidade que me faz sorrir.
O final de tarde rasga o calor cortante com uma brisa que me despenteia. Retiro-me por instantes da serra que me contorna, do rio que vejo lá em baixo, e ligo-me às minhas paisagens internas que o vento acordou. É um daqueles momentos de cortar a respiração, nem eu mesma sei porquê. O vento que me despenteou é o mesmo que me transporta para dentro, para um lugar sagrado e silencioso e me recorda que eu faço parte.
Sentar-me num qualquer lugar na noite, desperta, por entre os grilos e as estrelas, com árvores cujas sombras me trazem medos de infância e sons que me colocam alerta. Mas também perdida no mistério daquilo que não vejo e desconheço. O medo da noite longa que abre espaço à inocência e à poesia é tão selvagem como a coruja que pia. Também ele é casa, de alguma forma. Também ele me lembra de quem sou.
No outro dia, uma mulher falava-me do seu amor pelas nogueiras e do quão esse amor lhe trazia a pertença à família e à sua história. Outra mulher dizia-me que, por vezes, tinha de parar com a sua vida “normal”, simplesmente porque queria costurar um saco de pano. E que, por estranho que parecesse, dar forma àquele saco trazia sentido à sua vida.
Sempre que ouço, leio ou conto uma estória deparo-me com um lugar selvagem. Um local antigo, com as vozes de tantos que passaram antes de mim, e viveram, contemplaram, celebraram e choraram as suas vidas. Aprenderam o valor de respeitar as suas próprias paisagens e os seus lugares limiares, onde os espíritos do lugar habitam. E aprenderam a contar as suas histórias, desde o espaço entre mundos, o mítico, para que estas ecoassem por entre os tempos e recordassem o coração daquilo que já esquecemos. O meu coração recorda aquilo que não sei. Ressoa, reconhece-se e emociona-se. Talvez por isso procure, eu mesma, viver desde o lugar mítico, sabendo que tantos dos passos que dou, das escolhas que faço, são por si mesmas iniciações, estórias que foram já vividas vezes e vezes sem conta, e que ecoam pelo tempo.
O selvagem não “vem”, ele está. É quem somos. E tanto nos afastamos de quem somos, que passamos a vida a buscar sentido para a existência. Porém, vou caminhando com a sensação de que o sentido para a vida está na vida em si. Nos abraços que ansiamos dar, nas pessoas que nos devolvem amor e pertença, nas paisagens de que nos rodeamos e nas vezes em que nos comovemos simplesmente porque sim.
Nas tardes em que dormitamos ao relento, sorrimos com o nascimento de bebés, sejam eles humanos ou não, choramos a partida dos que amamos e continuamos a pisar o chão que nos sustenta.
Nas estórias que contamos, ouvimos ou criamos, no sonhar acordado, nas relações que estabelecemos com a vida, na liberdade fresca de uma gargalhada. Na alegria de criar, de partilhar ou de estar em comunidade. Na necessidade de solidão, e nas lágrimas que nos lavam.
São estes lugares que o verão me vem trazendo, por entre o som das cigarras e o calor que queima. E eu vou permitindo que ele entre, mais e mais. Talvez me possa ir tornando mais selvagem. Mais próxima de mim e da vida que me corre nas veias. Talvez eu mesma, possa ser paisagem, como a serra que vejo, a lebre que me espreita pela manhã, ou o mar de que sou feita.
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Élia. A Presença do Selvagem. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-52/a-presenca-do-selvagem, número 52, 2024
Sempre que ouço, leio ou conto uma estória deparo-me com um lugar selvagem. Um local antigo, com as vozes de tantos que passaram antes de mim, e viveram, contemplaram, celebraram e choraram as suas vidas. Aprenderam o valor de respeitar as suas próprias paisagens e os seus lugares limiares, onde os espíritos do lugar habitam. E aprenderam a contar as suas histórias, desde o espaço entre mundos, o mítico, para que estas ecoassem por entre os tempos e recordassem o coração daquilo que já esquecemos. O meu coração recorda aquilo que não sei. Ressoa, reconhece-se e emociona-se. Talvez por isso procure, eu mesma, viver desde o lugar mítico, sabendo que tantos dos passos que dou, das escolhas que faço, são por si mesmas iniciações, estórias que foram já vividas vezes e vezes sem conta, e que ecoam pelo tempo.
Élia Gonçalves
Colunista e Autora regular da Revista
Psicóloga
Terapeuta Transpessoal
Sub-Direção EDT – Escola Transpessoal
Contadora de Estórias
Mitologia Pessoal Criativa
Autora do Mito de Ophídia
elia.gonçalves@escolatranspessoal.com