Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

3 MIN DE LEITURA | Revista 52

“A minha parte” não pode já estar feita.

Indivíduos anti-individualistas em pertença ecosistémica.

 

Dizem-nos matemáticos cosmologistas que: se após o Big Bang (há 13.8 biliões de anos), o ritmo de expansão do Universo tivesse sido um milionésimo de 1% mais lento do que foi, o universo teria re-colapsado sobre si e implodido; e se tivesse sido um milionésimo de 1% mais rápido, teria sido demasiado rápido para agregação e ter-se-ia difundido em poeira molecular [1]. Ou seja, sem gazes, rochas, estrelas berço de átomos, sem galáxias e planetas berço de vida…

 

A nossa história enquanto vida Terrestre está cheia de improbabilidades estatísticas, estocasticidades mutagénicas e sincronicidades absurdas, relações improváveis sem as quais não estaríamos aqui.

Multipliquemos tudo isso por cada indivíduo, em cada um dos nossos contextos biológicos, sócio-ecológicos, familiares, ultra-pessoais… chegamos a uma expressão de vida única, irrepetível, em cada um de nós. O mesmo é verdade para qualquer organismo.

Como respeitar, então, este milagre orgânico individual, sem cair nas armadilhas do hiper-individualismo que devastam ecossistemas essenciais à sobrevivência do todo?

Como combater o individualismo consumidor sem desempoderar o indivíduo como unidade de mudança sistémica?

“Já faço a minha parte” e outras  armadilhas do hiper-individualismo imaturo e manipulado

Já faço a minha parte” é o que dizemos muito em contextos sócio-económicos de baixa escassez. Referimo-nos, habitualmente, a comportamentos individuais que adoptamos: reciclar, comprar biodegradável, segunda-mão etc.

Dizemo-lo em finalidade desresponsabilizada, expiação de culpa, e alívio da dor da impotência individual real perante a crise sócio-ecológica sistémica.

Compreendo, mas desafio. Por preocupação genuína e raiva contra indústrias poluentes que nos manipulam a ser parte da violência que abominamos. É cuidado fazer este “call in”, não “call out”, como diz Loretta Ross [2]. É um convite à aproximação relacional, não a afastamentos enraizados em ideias de superioridade moral.

Que fique claro, também, que não julgo todos esses comportamentos individuais inúteis, ou que não demonstram cuidado pelo todo. É importante reconhecer o esforço sócio-económico feito por muites nas escolhas de consumo mais sustentável.

O que digo então? Que é importante interrompermos o solucionismo antes de decidir a nossa parte já feita, porque a crise ainda se está a fazer. As nossas relações ecossistémicas não começam e terminam na nossa cozinha, país, ou continente. A ideia de que somos independentes de outros povos, espécies e biomas é mentira-pilar do paradigma anti-vida moderno.

É com amor, luto e raiva, que relembro que a ideia da “nossa parte” ser individual, simples, e finita é incentivada pelos grandes poluidores que lucram enquanto nos torturam com culpa, manipulando de forma estratégica e maligna a nossa preocupação com a Terra.

Relembremos que 108 instituições de combustíveis fósseis e cimento libertam ~70% das emissões globais de carbono, com a BP em 3º nos USA e em 6º a nível global [3,4]. O que nos dizem eles? Para nos focarmos na nossa pegada de carbono individual [5].

Estratégia de marketing clássica: culpar o consumidor em defesa do produtor que lucra com a Doença. Usada também por indústrias do tabaco, tintas de chumbo, opióides, etc. Ninguém quer ser cúmplice dos jogos da fome industriais.

 

“A minha parte” no apocalipse

Nascida em 1990, cresci com o terror do antropoceno matar tudo o que amo. Enquanto a possibilidade nos sufoca metaforicamente, para muites o apocalipse chegou há muito:

– Milhares de espécies extintas.

– Povos indígenas violentamente mortos e retirados das terras que cuidam, em relação ecológica recíproca, para extrairmos recursos.

– Três quartos dos jovens Paquistaneses com stress pós-traumático após as cheias de 2010, recorrentes em 2022. E que será das pessoas do Rio Grande do Sul?

– Congoleses violentados para alimentar o computador de onde vos escrevo.

– Palestinos, sob genocídio co-financiado pelos nossos consumes.

-…

Como pode a minha parte estar feita, se estas realidades ancoram o meu conforto?

A lista de entrelaçamentos entre o indivíduo e a violência sistémica é longa, e dolorosa. Tão longa quanto a lista de entrelaçamentos entre a beleza do indivíduo e a beleza relacional do todo. “A nossa parte” é sistémica. Tem de ser parte presente, curiosa, que erra e evolui, aprende em comunidade, e insiste na utopia colectiva, não se afogando em culpa, mas erguendo-se em responsabilidade. Sustida pela beleza da pertença, em comunidade que partilha connosco os lutos e alegrias.

E ouço já o nosso ansioso “então, o que fazer”?

A própria pergunta, e o desconforto da incerteza, são a única resposta verdadeira, porque exigem diálogo contextual e constante com as nossas comunidades e ecossistemas. Desconfiem de solucionismos simples para crises complexas.  

Há cartografias imperfeitas, aprendidas à medida que se caminha e se erra, tecidas de diálogos fractais, transdisciplinares, transcomunitários, que rasgam o paradigma hiper-individualista, dominador e violentador.

Sabemos que futuros sócio-ecologicamente sustentáveis exigem uma transformação das sociedades modernas urbanizadas. Fritjof Capra [6] sumariza, baseado no trabalho das investigadoras de sistemas Rian Eisler e Lucy Garrick: Temos de transformar pensamentos e valores auto-afirmativos (ex. Reducionismo, linearidade, competição, domínio) em integrativos (holístico, não-linear, cooperação, parceria). Quem sobreviveu ao genocídio colonialista diz-nos que para termos relações sustentáveis com a Terra são essenciais: confiança, respeito, reciprocidade, consentimento e responsabilidade [7].

O indivíduo é muito importante, sim, quando enraizado na sua relação com o todo, procurando desenraizar em si a cumplicidade com a violência sistémica.

Um átomo não faz um universo, um indivíduo não faz um paradigma.

A nossa parte, é relação viva com a Terra e, enquanto o solo não nos devolver ao todo (e até depois!), essa parte é diálogo ecológico inacabado.       

 

Referências

[1] ‘Journey of the UniverseBrian Swimme & Mary Evelyn Tucker (2011)

[2] https://www.youtube.com/watch?v=xw_720iQDss

[3] https://science.thewire.in/environment/big-oil-hijack-carbon-calculator/

[4] https://clear.ucdavis.edu/blog/big-oil-distracts-their-carbon-footprint-tricking-you-focus-yours

[5] https://x.com/bp_plc/status/1186645440621531136

[6] ‘The Web of Life’, Fritjof Capra (1996)

[7] https://decolonialfutures.net/7-steps-back-forward-aside/

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. “A Minha Parte” não pode a estar feita. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revista-52/a-minha-parte-nao-pode-ja-estar-feita/, número 52, 2024

A lista de entrelaçamentos entre o indivíduo e a violência sistémica é longa, e dolorosa. Tão longa quanto a lista de entrelaçamentos entre a beleza do indivíduo e a beleza relacional do todo. “A nossa parte” é sistémica. Tem de ser parte presente, curiosa, que erra e evolui, aprende em comunidade, e insiste na utopia colectiva, não se afogando em culpa, mas erguendo-se em responsabilidade. Sustida pela beleza da pertença, em comunidade que partilha connosco os lutos e alegrias.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com