artigo de Maria Trincão Maia

Give Yourself a Break. Dissociate.

4 MIN DE LEITURA | Revista 51

Entre a possibilidade do fim do mundo, ou a sua efetiva existência, existo. Existo neste espaço que me faz oscilar entre a esperança e o desespero. E a pergunta: se o mundo está a acabar por que vale a pena lutar? E lutar por quê? E por quem?

Depois relaxo, anseio pelo novo iPhone, o meu já está a dar sinais de velhice precoce programada. O famoso obsoletismo programado. Escolho ignorar como são feitos todos os componentes dos aparelhos eletrónicos, rezo para que o meu querido computador dure mais uns tempos, já está numa idade avançada, 11 anos. Mas a Microsoft faz questão de me avisar, mesmo no arranque, que quanto mais velho é o aparelho, mais limitado em capacidade e desempenho fica. Mas eles não conhecem o meu maquinão, este objecto que se torna quase uno comigo, acompanha-me desde que comecei a ser uma jovem adulta tardia. Foi pano de fundo de muitas pesquisas estranhas, interesses esquisitos, fases que é melhor nem lembrar e outras que são absolutamente incríveis, descobertas de novas formas de pensar e a maravilha que é saber que sou limitada pela minha própria existência e contexto. A dureza de me saber finita na imaginação, limitada na pele pela minha cultura. Duro e libertador, porque afinal não sabemos tudo nem conseguimos imaginar tudo. E remeto-me ao pouco que li de Donna Haraway e do Manifesto Ciborgue e como isso faz sentido. O meu computador já faz parte de mim.

E volta a grande questão de como é viver sem esperança ou como é ter esperança sem ilusões? E recordo que disse estas exactas palavras quando a minha companheira e amada Gala recebeu o diagnóstico de ter semanas ou meses de vida. Ela morreu, morreu passado 3 semanas, a 3 de março. E eu não aprendi o que era ter esperanças sem ilusões, porque todos os dias rezava por um milagre, porque todos os dias acalmava na expectativa de ela não morrer, de ela ficar. Porque não dormia de desespero e senão fossem uns químicos passaria o dia a chorar e a ter ataques de ansiedade. E no último dia que ela esteve viva, parei e perguntei-me a mim mesma o que estava a fazer a minha amada gata. Que vida lhe estava a prolongar, que vida ela estava a ter. E pedi, com todo o amor, para ela parar de sofrer, mas que eu não tivesse que a mandar eutanasiar, a hora tinha chegado. Pedi que ela morresse. E ela morreu sossegada e confortável, o seu corpo desligou-se e disse-me adeus. Tatuei-a no braço para que a tivesse sempre a ver, para que nunca a memória me traísse dos seus olhos azuis e nariz cor de rosa, e para que toda a gente que me veja saiba que em mim existe a Gala e que com a Gala morreu parte de mim. Que serei para sempre incompleta.

E volta a mesma questão do mundo, como navegamos num mundo que tem a possibilidade de acabar? Como vivemos sem esperança ou sem ilusões? Gosto quando alguém diz: não sei o futuro, não fazemos futurologia. É impossível saber o que aí vem, podemos fazer jogos de probabilidades e as probabilidades são assustadoras. Recordo-me vagamente das aulas de economia em que um tal de Malthus, do início do sec. XIX, errou quando previu, através de contas matemáticas e teorias, que ia abater-se sobre a humanidade fomes catastróficas pois o crescimento exponencial da população não era correspondido pelo crescimento dos alimentos. E aí… alguém inventou os fertilizantes e mais umas quantas coisas foram descobertas. E as previsões não se cumpriram… pelo menos no norte global. Porém a fome não acabou, e todas as descobertas que permitiram que Malthus tivesse errado são agora verdadeiras ameaças para a humanidade. No meio disto tudo, há uma coisa de que tem que se ter consciência, o planeta terra irá continuar a viver. Ele está vivo até ao sol explodir, depois irá viver de outra forma. O mundo que está a acabar é o nosso e o mundo que estamos a matar é aquilo a que conseguimos deitar a mão. Matamos espécies, destruímos florestas, montanhas, podemos provocar sofrimentos terríveis, horrendos, infernais, mas assim que o planeta se livrar nós irá viver, reconstruir o que tem a reconstruir e seguir o seu rumo. Tive a honra de ouvir Ailton Krenak falar sobre a tragédia-crime da morte do Rio Doce (ou Watu como é chamado pelos povos indígenas). E quando questionado o que se devia fazer, quais as tecnologias a usar, quando participou em debates do assunto, na sua sabedoria disse: deixem o rio em paz, deixem o rio curar-se ele saberá o que fazer, parem todas as actividades industriais no rio.

A ideia que um rio possui maior sabedoria de cuidar-se é para quem está no poder apenas uma imaginação pitoresca. E entre limpezas e proibições, os povos indígenas das margens do rio perderem o seu ancestral e ficaram incompletos.

Estas histórias doem-me profundamente, quando uma árvore é cortada por motivos estéticos doí-me, quando florestas inteiras ardem, doí-me. Mas a questão que me coloco é dói para quem? Para mim enquanto humana que vejo o fim aproximar-se, que tudo isto significa que sim estamos a dar cabo do nosso habitat, mas quando formos exterminados como uma praga em que nos tornámos o planeta viverá. Então no fundo, mesmo no fundo, não é pelo planeta que sofro, mas pela minha existência nele. Porque continuamos a pôr-nos no centro de tudo, continuamos a achar que tudo gira à nossa volta, mas não gira.

Desço a Avenida da Liberdade no 25 de Abril e emociono-me, emociono-me de tanta esperança, de tanta coragem. Como era bom que todas as nossas questões fossem reduzidas a nós próprios, aos nossos umbigos e dores. Como era bom que vivêssemos num vácuo e que nada que fizessemos afetasse nada. Mas não vivemos. E recebo das mãos de uma menina do Climaximo um panfleto, de papel grosso, cheio de cores em tons vermelhos e fico estupefacta da dissociação destes jovens. Que fecham estradas, atiram tintas, mas não escolhem papel reciclado, que não sabem que a tinta vermelha contem mais químicos que qualquer outro tom e que inclusive é preciso petróleo para todo aquele processo. Lutam pelo fim dos combustíveis fosseis, mas não navegam profundamente para ver a ironia daquela escolha gráfica. Mas seguimos… os cravos vermelhos abrem caminho, junto com a minha família seguimos seguros que o 25 de Abril é o dia mais bonito do nosso país. Sabemos as canções todas, das lutas, sabemos a história toda. Tenho um carinho imenso pela figura do Salgueiro Maia e emociono-me sempre no 25 de Abril.

Não tenho respostas para as minhas perguntas… apenas vivo, vivo na incerteza do que nos espera. Vivo a tentar aprender a despir a pele, que me aprisiona, da cultura em que nasci, a viver nos paradoxos. Às vezes com um pé bem assente no consumismo, outras vezes a fugir dele. Tento, tento ser humana, tento ser cuidadora do meu habitat. E quando preciso mesmo de relaxar… dissocio-me a achar que o humano é o centro deste planeta. Mas que o meu break não dure muito, porque é preciso ter urgência em estar no desconforto.

Para citar este artigo:

TRINCÃO MAIA, Maria. Give Yourself a Break. Dissociate. Vento e Água – Ritmos da Terra,https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-51/give-yourself-a-breack-dissociate/ , número 51, 2024

Maria Trincão Maia

Maria Trincão Maia

Editora da Revista

Pessoa, às vezes. À procura de alguma coisa que não sabe o que é. Caminhante por margens, que às vezes anda de carro ou bicicleta elétrica. Uma espécie de estudante e uma estudante de espécie. Designer mas não sabe de que... ainda. Porém, quase preferencialmente: uma metamorfose ambulante.

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