Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de Íris Lican Garcia

Chá de Urtigas

Ossos Sagrados

Novo workshop do Chá de Urtigas: já no dia 23 de Maio às 19h, com Íris Lican. O tema é Ossos Sagrados – Educação eco-somática e animismo. Segue o link para te registares.

4 MIN DE LEITURA | Revista 51

Afinal, é só um Cravo

 

Desses que tomam os campos em meados de Abril. Que secam na beira das eiras se não forem apanhados, ou caem em cima das mesas se postos nas jarras, depois de lhes murchar a haste.
Afinal, é só um cravo.
Daqueles que a floristas que partilhavam o mercado lisboeta com a minha Avó varina traziam nas cestas cheias para a venda, naquela madrugada de Abril. E que por isso depuseram nas espingardas, como sinal de gratidão e de esperança face ao pão do desespero de décadas.

“Já ninguém quer saber de Abril.”

Li no outro dia, juntamente com o estatuto da dona de casa, com os 60 autores que escrevem sobre os males de Abril e sobre a blasfémia de se falar mal de Abril.
Afinal, o estado novo também teve coisas boas. Certamente. No entanto, essa não é nem nunca foi a questão. A questão não é se houve ou não coisas boas, mas o balanço no fiel prumo da balança, das coisas boas com os malefícios. E sobretudo, do preço de cada coisa boa pago com direitos humanos e dignidade de vida. Bem como, aferir se as coisas boas eram mesmo benéficas colectivamente ou se serviam apenas um parco conjunto de pessoas.
Numa relação de violência doméstica também há momentos bons, mas não superam nem justificam o perigo dos maus. Não só não compensam, como os maus colocam o outro em risco de saúde, dignidade e sobrevivência.
Nem só de pão se vive, mas de Pão, Paz e Liberdade.

Abril ainda não se cumpriu, porque meio século não basta para estruturar um território devastado por colonização milenar sucessiva e imposição religiosa (sobre si e sobre os outros), por 4 séculos de inquisição mais 40 anos de ditadura. Abril é um gerúndio, é caminho sendo feito, campo sendo lavrado, semeadura de pensamento pautado pelo respeito, liberdade, responsabilidade e compaixão pelo outro. Aprendemos a denúncia e a opressão como benéficas. A miséria como destino. Aprendemos o medo mas ainda não conseguimos aprender o respeito.
O saudosismo do estado novo pertence a quem não o viveu, a quem dele beneficiou ou a quem não tem sequer condição de assumir a brutalidade do que sofreu.

É como ouvir dizer homens da idade do meu Pai: Eu tinha muito respeitinho pelo meu Pai, não era como agora. Quando na verdade o que se tinha era medo de ser espancado até desmaiar sem ninguém que lhe valesse.
Haverá quem tenha assim tantas saudades de uma sardinha a dividir por cinco pessoas como única refeição do dia ou de crianças de 5 anos a caminhar descalças na neve para fazer trabalho infantil algures?
De certeza que não temos, e é por isso que temos que ter cuidado e respeito.

Falamos de igualdade mas não nos olhamos enquanto iguais.
Fica-me clara a importância de Abril todos os dias. Talvez por me sentar de olhos nos olhos com a dor, diariamente, na minha profissão.

Talvez por ser mulher, e porque até 75 não poderia viajar sem autorização de pai ou marido, nem fazer denúncias por violência doméstica, nem ter legalmente uma profissão sem aval do homem da casa.
Mais ainda, talvez porque o meu Irmão partiu no parto, por violência e negligência obstétrica, um mês e um dia antes do dia 25 de Abril e o meu Pai, querendo fazer um processo judicial, foi de imediato ameaçado pela Pide ainda dentro do hospital, onde quase faleceu também a minha Mãe.
Viver com a identidade entrelaçada ao luto de um Irmão que nunca vimos e que nasceu antes de nós é um caminho de reverência a todos os lutos e lutas invisíveis, de toda a gente.

Talvez seja pelo vizinho da minha Madrinha, padeiro, que foi levado pela Pide porque o vizinho do lado disse que era comunista por não querer mover a cerca entre as duas hortas meio metro. Deixou os muitos filhos e voltou depois de Abril, sem unhas nem dentes. Houve quem tenha desaparecido sem rasto. Se calhar, ainda estamos todos a guerrear por meio metro de cerca. E o que é que isso diz de nós?

Talvez por saber que eu não teria sobrevivido, não só por ser mulher mas por ser quem sou, numa ditadura ou diante da inquisição.
Todos os dias agradeço humildemente.
Porque as pessoas que mais admiro e amo também não teriam lugar de existir.
E a perda já foi tão grande, tão abismal, por tanto tempo.
Agradeço até por quem tem a sorte de poder romantizar ditaduras: isso é privilégio.
Se as minhas palavras parecem brutais, que seria viver estas realidades?
Não se trata de ser de esquerda ou de direita: ditaduras não podem ser glorificadas sejam de que lado forem porque todos os seres humanos têm o direito de existir com dignidade no que têm de semelhante como de diferente.
Direita, esquerda, centro, são posicionamentos legítimos numa democracia, bem como é legítimo questionar o sistema vigente e continuar a querer melhor.
Mas sempre tendo diante do olhar que o bem ou é comum ou não é bem nenhum.
Como seria uma política pautada pelo respeito, compaixão e humanismo?
Como seria cada um e cada uma de nós exercer a opinião não como uma farpa ou um dardo mortal que fere e atinge o outro, mas antes como uma ponte que permite o encontro de margens opostas?
Que possamos cuidar os cravos, até quando secam.
Porque afinal, um cravo é mais do que a si mesmo. É tudo aquilo em que toca, tudo o que o toca a si e que faz de si quem é e quem se está tornando. Como Abril, que nos segue abrindo e adentrando.

Nas palavras da minha querida amiga Ana: é por Abril que escrevo este texto e que o posso escrever e isso é honrá-lo.
Não porque foi perfeito ou ideal, mas porque tornou possível a liberdade de podermos existir em diferença, para podermos crescer uns com os outros. E que benção maior essa é.

Para citar este artigo:

GARCIA, Íris. Afinal, é só um Cravo. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/cha-de-cravos/, número 51, 2024

Não se trata de ser de esquerda ou de direita: ditaduras não podem ser glorificadas sejam de que lado forem porque todos os seres humanos têm o direito de existir com dignidade no que têm de semelhante como de diferente.
Direita, esquerda, centro, são posicionamentos legítimos numa democracia, bem como é legítimo questionar o sistema vigente e continuar a querer melhor.
Mas sempre tendo diante do olhar que o bem ou é comum ou não é bem nenhum.
Como seria uma política pautada pelo respeito, compaixão e humanismo?
Como seria cada um e cada uma de nós exercer a opinião não como uma farpa ou um dardo mortal que fere e atinge o outro, mas antes como uma ponte que permite o encontro de margens opostas?
Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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Reflexões vivas sobre Terra Corpo como Medicina: eco-filosofia, eco-mitologia, espiritualidade da Terra, herbalismo, movimento, arte e terapia eco-somáticos.