Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

5 MIN DE LEITURA | Revista 51

A realidade? Trabalhadores não são engrenagens, solo não é pó.

O 1º de Maio e o realismo de interromper a violência interseccional da extração impetuosa dos corpos Terrestres

Fala-se muito de ser “realista” nestes tempos de complexidade e violência interseccional, em que os que desejam um mundo diferente, mais justo, são chamados de ingénuo a estúpido. “Isso é uma utopia, não é realista” dizem-nos vozes de quem, tal como nós, sente no corpo os impactos do extrativismo. Batem-lhes palmas, aqueles de quem os bolsos cheios dependem dessa aquiescência, dessa cumplicidade escassa de criatividade, dessa definição cínica de “realismo”.

A 1 de Maio celebramos as uniões da classe trabalhadora e proletariado pelos direitos humanos. Neste dia, feriado em mais de 160 países, reconhecemos uma luta emergente, multigeracional, global, pelas 8 horas de trabalho diário, entre outros direitos, (em vez do que muitas vezes chegara às 17!).

Os fios deste movimento social tecem-se desde o século XVI em Espanha, entrelaçam pedreiros Australianos em 1856, tingem-se de sangue em 1886 na rebelião de Haymarket na América, e continuam a tingir-se de sangue, suor e lágrimas, todos os dias, por todos aqueles que ainda agora, não veem reconhecidos os direitos aparentemente conquistados pela luta já bem antiga. Principalmente, os mais vulneráveis, principais produtores dos nossos confortos. Não sabem quem são? Basta ler quem vem a seguir ao “made in” das etiquetas. Tratados não como ser, mas como mera engrenagem das violências tecnocapitalistas, extractivas, globalizadas da modernidade.

Importa ainda, à saída de Abril, recordar que aqui em Portugal, este feriado foi assinalado em 1890, mas é interrompido pelo regime político ditatorial, corporativista e autocrata dos 41 anos de estado novo. O 1º de Maio volta a ser celebrado só em 1974 após a Revolução dos Cravos.

O que fica bem claro, mesmo em retrospetiva muito superficial, é o entrelaçamento entre as condições de trabalho; os regimes, sistemas e epistemologias de poder; e a sustentabilidade da vida na Terra. A relação inquebrável entre os direitos dos trabalhadores, o valor do descanso, a justiça económica, as políticas de extração de recursos terrestres, e a produção de poluição.

O 1º de Maio é um dia importante para a Terra. Relembra aos humanos que, de facto, na união está a força, que a interrupção do “business as usual” tem poder.

Relembra que a luta contra um sistema inebriado de “produto” e “consumíveis” a qualquer custo para alguns, com todo o benefício para outres, é rocha-mãe da sustentabilidade e justiça.

E relembra também o que é mais o doloroso de suportar: o sistema tecnocapitalista em que vivemos é extremamente eficaz na sua capacidade de digerir e contornar resistência e, por isso, mudança efetiva nunca será individual, rápida, linear ou uni-geracional.

O sistema não só gera, mas é plástico. Quando damos conta, já engoliu as ideias e mercantilizou a moral e a revolução: comprem uma t-shirtzinha, de preço acessível de fast-fashion, estampada com “FEMINIST”(1), produzida por mãos de mulheres a trabalhar em condições violentas e precárias na Ásia (2), que, provavelmente, vai acabar nas mãos de outras mulheres, quiçá na África ocidental (3), que navegam o mar de roupa descartada, intoxicando-se e às suas filhas, inadvertidamente. Sem direitos nem lucros, mulheres e terras são exploradas pelo sistema patriarcal e capitalista, na produção de um símbolo de feminismo que, no final das contas, é um crime sócio-ecológico beneficiador do exato sistema que diz criticar.

E é esta complexidade de intersecções que é muitas vezes o argumento usado pelos “realistas” quando nos dizem que “pois, mas mudar isto é muito difícil”.

E por isso, é urgente relembrar que a realidade se planta. Mesmo que leve séculos: impérios caem, culturas de consumo e sistemas económicos mudam, ecossistemas regeneram, espécies evoluem e adaptam-se a condições extremas e improváveis. Isto é realismo: a mudança é a única realidade ubíqua.

No entanto, os autodenominados “realistas”, do alto do seu pedestal ao pensamento binário e exausto, dizem-nos que trabalhar menos e exigir transições energéticas sustentáveis, isto é: tratar pessoa e Terra, com respeito, é impossível.

Dizem que tudo isso virá com o custo do desemprego dos trabalhadores que exijam mudanças aliadas à vida.

Esta narrativa exige uma “realidade” em que o poder seja exclusivamente de quem gere as entidades que beneficiam do business as usual.

De facto, o negócio dos combustíveis fósseis está melhor que nunca. O relatório Carbon Majors (4) mostra que a maioria dos poluidores expandiu operações de produção desde o Acordo de Paris (2016, em que se prometeram restrições e transições internacionais). Em 2022 as emissões de CO2 do consumo energético global atingiram um novo pico de 36.8 Gigatoneladas anuais (5). Quantidades anuais que levam séculos para a Terra processar.

Sabemos ainda que 80% das emissões globais podem ser atribuídas a apenas 57 entidades (6). Entidades que sem a maioria dos seus trabalhadores em condições precárias, farão o quê?

Parece-me então realista que os sindicatos continuam a ser uma força extremamente importante e interseccional na mudança rumo a formas sustentáveis de viver na modernidade. Há mais uma pista ainda, do realismo desta declaração: notem a resistência das empresas monopolizadoras do consumismo à formação de sindicatos (7). Seguir essa linha de comportamento vai levar-vos diretamente a quem mais beneficia da continuação da exploração dos trabalhadores e da crise climática.

Como diz Matthew Huber e ecoam tantxs outrxs estudantes do realismo complexo, interseccional, não-binário, da modernidade: o colapso sócio-ecológico não é uma falha do sistema económico vigente, é uma inevitabilidade perante a sua permanência.

Assim, sempre que me dizem que um futuro diferente, justo e sustentável não é um desejo realista, lembro-me de uma mulher que, numa marcha pelo clima segurava um cartaz dizendo apenas “Utopia o caralho”.

Não estou interessada na vossa ofensa contra o palavrão, redirecionem a energia e venham antes ofender-se com um sistema que violenta a maioria para benefício da ínfima minoria, mascarando este absurdo de imutável.

Venham ofender-se com quem, ignorante das relações entre organismo e geoclima, trata o solo como pó.

Venham ofender-se contra o investimento dos impostos de trabalhadores em projetos e guerras que destroem a vida.

Venham ofender-se contra os “realistas” que da realidade, parecem conhecer apenas o que beneficia a sua inação e o seu conforto.

Relembremos hoje quem lutou por uma realidade que nos permite condições de trabalho mais humanas do que as que conheceram, direitos adquiridos que foram sonhados. Relembremos que certamente lhes disseram muitas vezes “mas isso não é realista, é utopia!” e colectivamente elxs seguraram um cartaz que dizia…

Que o sistema é implacável, mas nós somos mudança, vida, evolução e criatividade.

Esse caminho pela liberação colectiva, vai ser um caminho fácil, confortável e perfeito? Sejamos realistas, não. Vamos cometer erros e ter que lidar com consequências não intencionais? Sim.

É realista achar que um mundo mais justo é impossível? Feliz 1º de Maio. Descansem hoje, se puderem, e se não puderem por razões socio-económicas, possa isso ser convite à interrogação e quiçá, à interrupção criativa.

Fontes e inspirações:

  1. https://www2.hm.com/en_us/productpage.0504353004.html\
  2. https://www.youtube.com/watch?v=rwp0Bx0awoE
  3. https://www.youtube.com/watch?v=bB3kuuBPVys
  4. https://influencemap.org/briefing/The-Carbon-Majors-Database-26913
  5. https://www.iea.org/reports/co2-emissions-in-2022
  6. https://www.jornaldenegocios.pt/sustentabilidade/ambiental/detalhe/maioria-das-emissoes-globais-atribuidas-a-57-entidades
  7. https://time.com/6221176/worker-strikes-employers-unions/

“Utopia for Realists: The Case for a Universal Basic Income, Open Borders, and a 15-hour Workweek” Rutger Bregman

“Climate Change as Class War: Building Socialism on a Warming Planet” Matthew T. Huber

“Freedom Is A Constant Struggle” Angela Davis

“The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins” Anna Lowenhaupt Tsing

Toda a obra da Ursula K. Le Guin, onde a mudança é ilustrada e sonhada “Any human power can be resisted and changed by human beings.”

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. A realidade? Trabalhadores não são engrenagens, solo não é pó. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/o-convite-do-cha-de-urtigas-a-respiracao-ecossistemica/, número 51, 2024

Como diz Matthew Huber e ecoam tantxs outrxs estudantes do realismo complexo, interseccional, não-binário, da modernidade: o colapso sócio-ecológico não é uma falha do sistema económico vigente, é uma inevitabilidade perante a sua permanência.

Assim, sempre que me dizem que um futuro diferente, justo e sustentável não é um desejo realista, lembro-me de uma mulher que, numa marcha pelo clima segurava um cartaz dizendo apenas “Utopia o caralho”.

Não estou interessada na vossa ofensa contra o palavrão, redirecionem a energia e venham antes ofender-se com um sistema que violenta a maioria para benefício da ínfima minoria, mascarando este absurdo de imutável.

Venham ofender-se com quem, ignorante das relações entre organismo e geoclima, trata o solo como pó.

Venham ofender-se contra o investimento dos impostos de trabalhadores em projetos e guerras que destroem a vida. 

Venham ofender-se contra os “realistas” que da realidade, parecem conhecer apenas o que beneficia a sua inação e o seu conforto.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com