Mil-em-Rama

Coluna de Maristela Barenco

3 MIN DE LEITURA | Revista 50

Quando a arte refecunda a vida: por “Dias Perfeitos”

Às vezes arte e vida fazem rizoma e reencantam nossa existência. A arte acessa essa condição de promover reflexão profunda através da estetização da vida. Assim foi minha experiência com o filme “Dias Perfeitos”, do diretor alemão, Wim Wenders, e protagonizado pelo maravilhoso Koji Yakusho, no papel de Hirayama. Dias Perfeitos conta a história de um homem, cujo trabalho – que ele faz de forma exímia, quase como um Dô (caminho iniciático japonês) -, é limpar os banheiros públicos de um bairro de Tókio. Ele acorda todos os dias, à mesma hora, enseja um sorriso para a vida, arruma a sua cama, cuida de suas plantas, abre a porta da casa e em um gesto regenerativo, olha para o céu e respira profundamente. Entra em sua Van, e escolhe a trilha sonora de seu dia, em suas fita cassete, até se dirigir ao primeiro banheiro público.

Algumas coisas desse filme me trouxeram reflexões que não param de ecoar.

Uma delas é a necessidade de retornarmos ao infra-humano, aquele lugarzinho dentro de nós, em que a alma é investida de um sopro de propósito profundo do nosso ser, nesta existência, antes de sermos inseridos na linguagem do mundo, que conhece o alfabeto do poder, do desempenho, do futuro e do dinheiro.

Uma das formas de se achegar até esse lugar é perguntarmos, para nós mesmos, o que amaríamos fazer nessa vida se não precisássemos de dinheiro. Essa semana eu fiz essa pergunta no meu stories do instagram e recebi as respostas mais lindas. Algumas pessoas queriam voltar pra roça, queriam mergulhar na natureza, outras queriam poder sentar em praça pública para ouvir os outros. Apenas duas pessoas disseram que fariam aquilo que já fazem. Hirayama, que lá pelo meio do filme, encontra a sua irmã, e nos faz intuir que ele vinha de uma condição de riqueza, não trabalha nos banheiros públicos como um ato heroico, voluntário, serviçal ou espiritual. Ele parece estar onde a sua alma pode e quer estar, e estando ali, procura fazer da forma mais bem feita aquilo que é o seu propósito.

Uma segunda questão é que o filme, de forma subliminar, sem ser panfletário, recorda-nos a beleza analógica de nossa condição humana: Hirayama lê livros físicos diariamente antes de dormir, ouve suas músicas preferidas em fitas cassete, e todos os dias, na hora de seu almoço, em um parque, tira uma foto da mesma árvore (que nunca é a mesma), com sua máquina analógica, cujos filmes são revelados semanalmente. As pressões de uma vida digital têm imposto um ritmo inumano à nossa condição, trazendo a sensação de um cansaço infinito e de uma falta de energia. Somos seres analógicos e há tanta beleza e possibilidade nessa forma de existir.

Uma terceira questão é a preciosidade de um caminho não gregário, ainda que aberto às demandas da comunidade onde se insere. Vários personagens entrarão em sua vida, em momentos de grande leveza. Mas Hirayama não se ressente com sua solitude. Parece bastante confortável com ela. Como nos diz a jornalista Eliane Brum, a Comunidade é uma experiência fundamental no horizonte da Vida, porque através dela nos sentimos cuidados e irmanados. Mas precisamos lembrar que o gregarismo que a cultura virtual nos impõe é pobre, destrutivo, massificador, afasta-nos do sopro de nossa alma. Qualquer pessoa que pareça ter um compromisso com a jornada de sua alma terá que caminhar também em solitude.

Uma quarta é o acolhimento das sombras. As sombras atravessam a vida de Hirayama em movimentos que não são claros para nós, mas que são acolhidos por ele.  Seja nos sonhos, nas travessias das noites, dos dias e dos encontros: há momentos em que ele ri, há momentos em que ele chora, há momentos que o carro quebra, há momentos em que falta dinheiro, há momentos em que a rotina é absolutamente quebrada, há momentos do existir que nem tão confortáveis são. Hirayama toma banho em banheiro público. Mas parece renascer em contato com aquelas águas e em cada anoitecer. Na manhã seguinte, há que se estar despojado para experimentar o milagre da vida.

Por fim, o filme fala de um personagem que está enraizado no presente. Ele fala para sua sobrinha: agora é agora. Em uma sociedade líquida, em que o tédio é evitado a todo custo, assim como a rotina, e que só a vida só se compraz em estímulos que se sucedem a outros, frenéticos, Hirayama nos mostra que a vida é aquilo que se repete com consciência, ou, como diz Isabela Boscov, um exercício-em-contentamento. Para cada dia, entreguemo-nos à experiência do dia. Para cada momento, que saibamos oferecer inteireza à experiência a qual nos inserimos.

Por fim, que nos reste um tempo para cultivar o silêncio, para nada fazer, para nos sentar nos bancos de uma praça, para tudo contemplar e para nutrirmos as linhas de forças que não vemos: Hirayama, todos os dias, faz uma jogada, em um jogo da velha, cujo papel se oculta em um canto de parede do banheiro, e cujo oponente ele nem conhece. Encontros assim exigem abertura e gestos atentos e cuidadosos.

Nessa experiência viva, estética, que por ser arte vira encontro inspirador, vislumbramos a possibilidade de experimentar dias perfeitos, dias absolutamente disponíveis (e depreciativos pra esse tempo), em que nos é permitido sentir, experimentar novos amanheceres, novos dias e uma nova vida – todas as manhãs . Dias perfeitos em que podemos adentrar o nosso carro, para cruzar a mesma estrada, e nos emocionarmos, ao som de Nina Simone… “feeling good”: eu estou me sentindo bem.

Para citar este artigo:

BARENCO, Maristela. Quando a arte refecunda a vida: por “Dias Perfeitos” Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/quando-a-arte-refecunda-a-vida-por-dias-perfeitos/, número 50, 2024

Por fim, que nos reste um tempo para cultivar o silêncio, para nada fazer, para nos sentar nos bancos de uma praça, para tudo contemplar e para nutrirmos as linhas de forças que não vemos: Hirayama, todos os dias, faz uma jogada, em um jogo da velha, cujo papel se oculta em um canto de parede do banheiro, e cujo oponente ele nem conhece. Encontros assim exigem abertura e gestos atentos e cuidadosos.

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga e Doutorada em Ciências Ambientais

Formada em psicologia, com doutorado em ciências ambientais, estuda subjetividade, é professora universitária, idealizadora do Canal de Podcast Mil-em-Rama e participante do projeto Conversas do Além-Mar.

Professora do Departamento de Ciências Humanas do INFES - UFF
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEn-UFF
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente - PPGMA-UFF

Instagram: @mil_em_rama
E-mail: maristelabarenco@gmail.com