Entrelaçamentos Inegáveis

Coluna de Telma G. Laurentino

3 MIN DE LEITURA | Revista 50

O convite do chá de urtigas à respiração ecossistémica

 

Uma história cósmico-ecossistémica de relações regenerativas, por uma urtiga

 

Sou Urtiga de terras modernas e urbanizadas.

Há quem me chame erva-daninha. Quem me odeie pela urticária que me defende de predadores e pegadas distraídas. Odeiam-me porque cresço em sítios “inconvenientes” onde o vento me plantou.

Mas tu conheces-me as propriedades medicinais. Bebes-me em chá, porque te sirvo:

Ajudo quem sofre de dores musculares, gota, artrite, hiperplasia da próstata, diabetes, alergias… Sou fonte rica de antioxidantes, contenho um abecedário de vitaminas, ferro, e minerais…

Não me chamas daninha, chamas-me medicina, benefício, e consomes-me.

Mas conheces-me para além do meu serviço, para além do lucro?

Respeitas-me como irmã e não só produto?

 

Inspira reciprocidade

Expira consumo

 

Permite-me um pedido, em reciprocidade pela medicina: não me consumas sem saber quem sou. Não me consumas sem me amar. Peço-te em eco ecossistémico:

Deixa-me interromper essa linguagem de consumo que te governa e guia, invisível e violenta.

Deixa-me urticar essa forma extrativa como falas contigo e com os outros.

Deixa-me expandir a medicina das veias à consciência.

Deixa-me contar-te a minha história cósmica, tão antiga quanto o Universo.

Deixa-me ser a tua guia de consciência ecossistémica.

 

Inspira ecossistema

Expira egotismo

Deixa-me contar-te sobre o ferro no meu corpo, que tantos benefícios traz ao teu sangue, ao teu corpo. É absorvido deste solo moderno pelas minhas raízes, nasceu da morte de estrelas e da vida de bactérias ancestrais. Quando o núcleo de uma estrela colapsa e explode, formam-se pesados átomos de ferro que assim são espalhados pelo universo. No início da vida no nosso planeta (no oceano) o ferro dissolvido, herdado dessas supernovas, combinou-se com o oxigénio libertado pelos primeiros organismos fotossintéticos: as cianobacterias. Formaram-se hematite, magnetite, criando-se os depósitos de ferro das rochas terrestres. Milhares de anos depois nutrem a vida, o solo, o meu corpo, o teu corpo.

 

Inspira tempo universal

Expira pressa

 

Sei que desconfias de mim, porque pico. Mas e se te disser que o carbonato de cálcio e a sílica que constituem os meus tricomas, estes picos que injetam e incomodam quem me toca, são herança protetora astral? Elementos também forjados nas estrelas. E se te disser que este carbonato de cálcio, essencial à evolução de vida na Terra, é o mesmo que forma as conchas do mar que amas apanhar na praia; o esqueleto dos corais que se extinguem em aviso; o teu próprio esqueleto? E se te disser que a urticária é ácido fórmico que produzo tal como as abelhas, as formigas, as vespas? Quando te picamos não é ataque, é defesa. Um lembrete de que esta Terra não é, afinal, só tua.

Vês então os fios elementares, universais, evolutivos que nos ligam? Sentes como estamos ligadas por ancestralidade comum?

 

Inspira ancestralidade comum

Expira separação

 

Vês? sou, como tu, herança evolutiva de colaborações, competições, extinções. Vida e Morte: Os meus antepassados botânicos que viviam no oceano primordial, algas microscópicas, uniram os seus conhecimentos fotossintéticos, que lhes permitiam produzir açúcar da luz do sol, com os fungos marinhos, que sabiam extrair nutrientes e minerais de rochas primordiais. Foi assim que evoluiu a vida terrestre: criaram as primeiras micorrizas, inventaram raízes, mais tarde sementes… e quanto mais evoluíam e cresciam plantas em terra, mais dióxido de carbono era fixado e oxigénio libertado.

As raízes erodiram rocha, transformando assim a morte das estrelas em vida na Terra. A morte de corpos terrestres fertilizou os solos com matéria orgânica. Aridez evoluída em solo fértil, mais vida. Os meus antepassados botânicos transformaram e deixaram-se transformar pela atmosfera, geologia e biologia planetárias.

 

Inspira alquimia

Expira aridez

 

Evoluíram desde então mais de 500 mil espécies de plantas terrestres: de musgos microscópicos a florestas de gigantes. Com as plantas, co-evoluiu toda a vida. Somos parentes generosos! Num ecossistema chamam-nos produtores, base da teia alimentar. Transformamos sol e água em biodiversidade. A nossa transpiração é elo do ciclo do oxigénio que enche os teus pulmões. Oxigénio co-criado por organismos e ecossistemas que julgas desconectados: desertos, florestas tropicais, oceanos. Tempestades, nuvens, rios, montanhas e mares. Escaravelhos da bosta, Cogumelos saprófitos, Jacarés predadores, Condores voltos da quase-extinção, Diatomáceas microscópicas que se veem do espaço…

 

Inspira co-criação

Expira excecionalismo

 

Sou Urtiga de terras modernas e urbanizadas.

O vento espalhou-me por todos os ecossistemas (exceto as regiões polares, que acho frias de mais para mim!), e por isso sei tanto. Sou hermafrodita, não assumo o binário de quase nada, e por isso conheço bem a Vida. Os humanos estudam-me, mitigam-me, comem-me, bebem-me, tecem de mim vestidos de fibras entrelaçadas de amor e luto, e por isso sei tanto sobre ti.

Confia em mim, quando te digo que somos átomo interestelar transformado em metabolismo planetário, vida, urtiga, cultura, chá, humano…

 

Inspira relação

Expira indiferença

Compreendes então que de Urtiga a Universo a distância é inexistente?

Que de ti a ecossistema planetário a única distância real são os poros da tua pele?

Há no entanto, uma distância irreal, mas realmente violenta: são esses muros filosóficos de individualismo que herdas e ajudas a construir. Lavoura que vem ainda com preço alto: a tua pertença, as relações regenerativas da vida. Tua, minha, da Terra.

Consome-me então, porque é impossível não consumir. Nutre-te sim, conscientemente, em respeito pela nossa história coletiva, entrelaçada. Em relação, convido-te a olhar de frente as opressões interseccionais do teu mundo. Não fujas às partes de ti enraizadas em aliança encapotada com os sistemas que desonram a Vida!

Escapemos juntas dos muros isoladores, não porque dissociamos da sua existência, mas porque em cada racha entre tijolos estéreis, crescemos vida.

Em cada urticária regeneramos a cura.

 

Inspira pertença ecossistémica

Expira violência individualista

 

Inspira regeneração

Expira opressão

Inspira

Expira

Para citar este artigo:

G. LAURENTINO, Telma. O Convite do Chá de Urtigas à Respiração Ecossistémica. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/o-convite-do-cha-de-urtigas-a-respiracao-ecossistemica/, número 50, 2024

Vês? sou, como tu, herança evolutiva de colaborações, competições, extinções. Vida e Morte: Os meus antepassados botânicos que viviam no oceano primordial, algas microscópicas, uniram os seus conhecimentos fotossintéticos, que lhes permitiam produzir açúcar da luz do sol, com os fungos marinhos, que sabiam extrair nutrientes e minerais de rochas primordiais. Foi assim que evoluiu a vida terrestre: criaram as primeiras micorrizas, inventaram raízes, mais tarde sementes… e quanto mais evoluíam e cresciam plantas em terra, mais dióxido de carbono era fixado e oxigénio libertado.

Telma G. Laurentino

Telma G. Laurentino

Bióloga

Educadora
Escritora
Artesã intuitiva
Biodiversidade – Evolução & Genética – SocioEcologia – Educação inclusiva –
Pertença
TelmaGL.com
Telma.laurentino@gmail.com