No Espetro – Neurodiversidade

e Justiça Social

Coluna de Fátima Marques

5 MIN DE LEITURA | Revista 50

Não se Pode Ensinar a Nadar Quem se Está a Afogar

Aviso de gatilho – suicídio, depressão, injustiça grave, ansiedade

Faz sentido começar por dizer que sou neurodivergente. Sou também “altamente funcional” e como muitas mulheres tenho uma grande competência em “masking”. 

Isto quer simplesmente dizer que consigo funcionar mesmo quando estou desfeita. O preço foi ansiedade constante, exaustão, incapacidade de explorar livremente, inibição da curiosidade, da alegria, da vitalidade, perda de confiança em mim e nos outros. 

Vivi 60 anos sem saber isto sobre mim. Foram 60 anos a tentar encaixar um círculo num quadrado. Em que fui rotulada de preguiçosa, irresponsável, desrespeitosa, demasiado sensível, ingénua, palerma, ridícula, ingrata, infantil… podia continuar. 

Hoje sei que sou neurodivergente, autista com atenção seletiva. Vejo a beleza disso e orgulho-me do que sou. Conquisto a minha dignidade e o meu respeito por mim própria todos os dias um bocadinho mais. 

A palavra neurodiversidade é relativamente recente e ainda é desconhecida por muita gente. Expressa apenas que há neurologias diferentes. 

Já as palavras neurotipico e neurodivergente falam de estruturas sociais e da sua formatação para um certo tipo de neurologia que se definiu chamar tipica. Colocando quem é divergente numa situação de desvantagem constante. Sentindo que não são realmente deste planeta e não pertencem a nenhum lugar. 

A maioria das formas de neurodivergência não são em si doenças mentais, no entanto, a falta de apoios adequados leva a que muitas pessoas neurodivergentes desenvolvam co-morbilidades ao longo da vida: sobretudo depressão e ansiedade. . 

A percentagem de desemprego entre pessoas neurodivergentes é de 30 a 40%, o que é três vezes mais do que para pessoas com outras deficiência, e 8 vezes mais do que a população sem nenhuma deficiência. 

Em relação a suicidio estes são os dados em relação apenas a autismo:

  • Adultos autistas sem dificuldades de aprendizagem tem 9x mais probabilidade de morrer por suicidio do que a população em geral
  • É a segunda causa de morte para pessoas autistas. A nossa esperança de vida é de 54 anos
  • 66% dos autistas adultos já consideraram o suicidio.
  • Crianças autistas têm  28x mais probabilidade de tentar o suicidio.

Estima-se que entre 1 em 5 e 1 em 7 pessoas sejam neurodivergentes, isto inclui Autismo, TDHA, Discalculia, Dislexia, Dispraxia, Síndrome de Tourette, Bi-polaridade, Borderline, e outras diferenças neurológicas. 

Aproximadamente metade destas pessoas não sabem que o são. E por isso, não só não recebem o apoio de que necessitam, como são vítimas de diagnósticos errados, medicação errada, terapia errada, e muitas delas, sobretudo mulheres acabam em situação de pobreza. 

Nos ultimos 4 anos tenho acompanhado várias pessoas neurodivergentes em situações de crise.

Aprendi que antes da terapia é preciso estabilidade social e económica, por isso uma boa parte do trabalho que tenho feito é mais social do que terapêutico. Não se pode fazer terapia a quem está ativamente a passar por trauma. Seria como ensinar a nadar uma pessoa que se está a afogar. Primeiro temos que a tirar da água. 

Deixo aqui as palavras de 3 mulheres, duas são acompanhadas por mim e a terceira por uma colega do Saúde para Todos. As partilhas falam por si. 

Todas ficaram espantadas e felizes por as suas experiências poderem vir a ajudar alguém.

Todas aceitaram imediatamente falar. Tenho aprendido imenso com elas. e imenso respeito pelas 3.

D– 40 anos – Autista, Trauma Complexo, desempregada, sem capacidade física nem psicológica de procurar trabalho de momento. A ser despejada do quarto onde vive. 

“Só descobri que sou autista no meio de uma depressão e um burnout. É a fase mais estranha e difícil da minha vida. Estou sozinha em Lisboa. Honestamente, esperança não é uma palavra no meu dicionário. Eu não tenho esperança de momento. Tenho muitos pensamentos suicidas.

Mas ainda estou aqui. Por sorte, eu conheci pessoas que me estão apoiar. E com elas estou a tentar encontrar essa esperança. 

Medicamentos e terapia não são o suficiente. Preciso de comunidade, preciso do apoio de pessoas que me amem e eu não tenho isso. É realmente difícil. 

Nunca parece ser o momento para eu ser cuidada por alguém. Eu realmente preciso disso, além da terapia, que é incrível, mas não é o suficiente. 

Tenho medo de deprimir toda gente que ler isto… honestamente. 

Onde está a esperança? Eu não sei.”

G.- Neurodivergente, anos de psiquiatria, vários diagnósticos, sequelas de Trauma complexo.

“Para não ter essa vontade de morrer, gostaria de não ter passado pelo que passei na infância. Sei que não posso mudar isso. Talvez, se tivesse falado sobre isso mais cedo, poderia ter sido diferente, mas também isso não posso alterar. 

Sinto que a esperança está a desaparecer. Eu costumava ser cheia de esperança, mas estou a perder isso. 

Quero que as pessoas saibam que ter uma doença mental, onde ninguém, a nível institucional aposta, é uma das doenças mais mortais e mais horríveis que se pode ter.

Embora não seja visível. E provavelmente isso é que a torna tão perigosa, junto com a ignorância das pessoas. Se vemos sangue, achamos que a pessoa está gravemente doente, mas nós, muitas vezes, estamos a sangrar por dentro e morremos sem ninguém ver. 

É uma gaiola invisível, que me dá sintomas que me paralisam, uma angústia tão profunda, um sofrimento que vai até o meu âmago. Preciso tanto de compreensão. Acredito que o amor cura. Tenham mais amor e acreditem mais em nós!

Nós as pessoas, como a doença mental, queremos voltar a ter uma vida equilibrada. Sentir felicidade e realizar os nossos sonhos: trabalhar sem medo, ter amigos verdadeiros, que não nos julgam e nos veem como pessoas reais com uma doença real, que não é falta de espiritualidade, uma maneira de chamar a atenção ou uma fraqueza pessoal. 

Obrigada por me lerem!”

S.- Autista, em diagnostico de ADHD, com doença crónica auto-imune reativa ao stress que a incapacita temporariamente para o trabalho. Sofreu de violência institucional grave por parte de uma Associação que era suposto apoiá-la. Não recebe qualquer apoio do Estado. 

“O que acontece que me leva a querer desistir? Nem é bem o que acontece, é o que não acontece: por si só é difícil pedir ajuda. Quando percebi e aceitei que merecia receber ajuda, nas entidades oficiais e associações, fui tratada como se não fosse importante, desvalorizaram o meu sofrimento, o desespero, o pânico. 

A burocracia por trás, tudo o que é necessário provar, tudo o que exigem que apresente, é exaustivo ao ponto de me sentir culpada por estar a passar por isto, sentir que é culpa minha e que tenho que me desenrascar. 

Houve circunstâncias num momento da minha vida, que desencadearam uma bola de neve, fui perdendo o controle, a esperança, tornei-me cada vez mais vulnerável, e quando procurei ajuda foi desvalorizado

É complicado, relativamente a esta questão de querer morrer. A questão é que eu não quero desistir. Quero parar de sofrer, quero parar de sentir. Tenho tido muitos pensamentos suicidas, não me fazem tomar ação por falta de coragem. Naquele momento não consigo ver mais nada. Não vejo nenhuma outra solução. Só consigo ver tudo o que existe de mal, a injustiça, a falta de apoios que me tem destruído completamente.

Quero fazer coisas, quero trabalhar, quero ficar melhor, quero ter saúde para conseguir voltar a conquistar aquilo que eu ambiciono. Mas são muitas coisas 

O que me ajuda a não fazer? Tem sido a minha terapeuta, o apoio incondicional. Tem dias e noites em que está disponível para mim. Eu queria não precisar…mas em momentos de crise, de desespero, tem sido esse apoio a salvar-me nos últimos quatro anos. E o facto de me sentir realmente vista e ouvida, e conseguir dar nomes àquilo que sinto. 

Às vezes é só isso que preciso. ser vista, ouvida e conseguir compreender o porquê daquilo que me está a acontecer, o que é que me está a levar para aquele caminho destrutivo. Às vezes isso é o suficiente para ter o impulso de sair o mais rápido possível daquele estado. 

É fundamental que as assistentes sociais, e outros que lidam com questões de trauma, tenham formação na área, isso vai ajudar muito, muito mesmo para a pessoa que está do outro lado a pedir socorro. 

É isso, Obrigada.”

Também vos agradeço por terem lido. 

Este é um tema muito pessoal para mim. Como é natural, fiquei congelada a olhar para o ecrã muito tempo antes de conseguir começar escrever. 

Sei que se chama disfunção executiva e que não é desorganização nem preguiça, já não sinto culpa. Sinto compaixão por mim própria. Compreendo que é um sinal de que estou a entrar no território do trauma. Reduzo o passo e respiro. Deixo-me sentir a tristeza. Deixo-me sentir o medo. 

Gostaria muito de saber as vossas impressões e questões sobre estas partilhas. Têm perguntas a estas mulheres ou a mim? Podemos abrir um diálogo? 

Para citar este artigo:

MARQUES, Fátima. Não se Pode Ensinar a Nada Quem se Está a Afogar. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/nao-se-pode-ensinar-a-nadar-quem-se-esta-a-afogar, número 50, 2024

Faz sentido começar por dizer que sou neurodivergente. Sou também “altamente funcional” e como muitas mulheres tenho uma grande competência em “masking”. 

Isto quer simplesmente dizer que consigo funcionar mesmo quando estou desfeita. O preço foi ansiedade constante, exaustão, incapacidade de explorar livremente, inibição da curiosidade, da alegria, da vitalidade, perda de confiança em mim e nos outros. 

Vivi 60 anos sem saber isto sobre mim. Foram 60 anos a tentar encaixar um círculo num quadrado. Em que fui rotulada de preguiçosa, irresponsável, desrespeitosa, demasiado sensível, ingénua, palerma, ridícula, ingrata, infantil… podia continuar. 

Fátima Marques

Fátima Marques

Fundadora dos projetos Co.mover.se e Saúde Para Todos.

Acredita no potencial curativo
de trazer à luz as dinâmicas
ocultas dos relacionamentos, e
na transformação dos ciclos de
violência em ciclos de empatia.

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