O Canto do Verbo
Coluna de Ana Alpande
1 MIN DE LEITURA | Revista 50
Culto a Eternidade
Quando eu morrer lavem a minha pele, com
água de rosas e violeta.
Embrulhem-me num lençol de linho mourisco tecido com o amor
dos que cuidaram de mim.
As minhas mãos vazias, finalmente…
Sob o meu coração um saco tecido em lã bordaleira
debruado
com fino fio merino e cordão tingido com os líquenes
do meu carvalho favorito.
No saco
sementes das minhas árvores irmãs.
Coloquem o meu corpo sobre uma esteira alta no alto da colina
onde contemplei tantas e tantas vezes o voo circular da águia.
Deixem-me ficar 7 dias.
Deixem-me despedir da vida que se foi do corpo,
deixem-me olhá-lo, abraçá-lo uma vez mais.
Deixem-me ouvir o murmúrio do vale uma última vez,
enquanto ainda somos separação
enquanto o rio apressado corre para a Primavera.
Deixem-me sentir a proteção do granito e pela última vez ouvir
as suas advertências.
Deixem-me cruzar o olhar com o da águia que
se desenha no céu azul.
Não se preocupem se a raposa curiosa vier deitar-se a meu lado,
como fez tantas vezes enquanto estava viva
e bebia as estrelas do céu.
Passados sete dias retirem as sementes do saco de lã que
cresceu no meu peito.
Queimem o meu corpo como se queimam os restos do jardim
usem podas de cedro, lavanda, alecrim e tomilho.
Espalhem rosas pelas cinzas, as minhas doces e destemidas,
sempre presentes… rosas.
Espalhem as sementes uma a uma
respeitando sua individual vontade
como se fosse uma oração.
Depois…
depois permitam-me ser a liberdade do informe,
o sopro do amor generoso que se propaga pelos campos
e fecunda toda a existência.
Publicado pela primeira vez em: A Jornada da Heroína pelo Zodíaco, Edições Mahatma 2020
Mais sobre o livro: https://anaalpande.com/livro-a-jornada-da-heroina-pelo-zodiaco/
Para citar este artigo:
ALPANDE, Ana. Culto a Eternidade. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/culto-a-eternidade/, número 50, 2024
Sob o meu coração um saco tecido em lã bordaleira
debruado
com fino fio merino e cordão tingido com os líquenes
do meu carvalho favorito.
No saco
sementes das minhas árvores irmãs.
Ana Alpande
Colunista e Autora regular da Revista
Terapeuta de Trauma, Artista, Astróloga, Contadora de Histórias
A minha missão é dizer não ao desperdício da beleza e procurar contribuir para uma estética que promova a criação de espaços quotidianos que fertilizem o território da Alma.
Actuo como educadora, terapeuta de trauma e facilitadora de grupos terapêuticos de expressão artística e co-regulação emocional.
O principal foco de estudo e reflexão de momento é o trauma individual, transgeracional e colectivo, tendo como pano de fundo a questão do vínculo, nas suas variadas afetações e expressões.