Ciclos da Terra e da Alma

Coluna de Íris Lican Garcia

2 MIN DE LEITURA | Revista 50

Chá de Cravos

 

A D. Laura era vizinha da minha Avó e da minha Madrinha.
A Avó morava no 1°dto, a D. Laura no 1°esq, a Madrinha na cave dta.
A Avó da Beira Alta, a Madrinha de Trás os Montes e a D. Laura do Algarve.
A Avó e a Madrinha passaram fome e frio. Lembravam o dia em que puderam comprar o primeiro par de sapatos, e depois o segundo. A D. Laura cresceu numa grande propriedade no monte algarvio, que depois herdou e se manteve sempre lucrativa. 
Quem acha que Portugal é homogéneo deveria ter tomado Chá com estas três senhoras, cada uma de sua nação, crenças, presença e costumes.
A Avó e a Madrinha eram comunistas, confiavam no Álvaro Cunhal, na Odete Sanyos, na Maria de Lurdes Pintassilgo. Sabiam o que tunha acontecido aos seus familiares e amigos nas prisões da ditadura. Alguns voltavam a casa sem unhas nem dentes. Outros, não voltaram nunca.

Quando veio Abril, não conseguiam acreditar. Que era o fim, que era o princípio, que era a possibilidade de ser outra coisa.

Já a D. Laura gostava fervorosamente de Salazar, confundia medo com respeito e obediência com entendimento.

Eram amigas, as três. Cientes do colossal espaço que as distanciava mas ainda assim capazes de entender que a vida é composta de perda, consolo, amor e desorientação em medidas variáveis.

Sentava-me à mesa com elas, entre Chá de cidreira e filhoses, testemunhando a dicotomia daquele encontro e a sua profundidade.
Hoje, quando parece que os 50 anos de Abril nos jazem desfalecidos nos braços impotentes lembro estas três senhoras.
Lembro que os nossos lutos são a força motriz das nossas lutas mas que jamais nos podemos permitir perder o fio do respeito mútuo e da humanidade, sobretudo diante da diferença (porque da semelhança é fácil e não é preciso aprende-lo, para q
ue as nossas lutas não sejam lutos de quem merece tanto existir como nós.
Há em mim a recusa ciente de não ceder à objetificação do outro. De lhe ver a humanidade e de lhe oferecer tanta responsabilidade como a que tomo para mim.
Não me perturba numa democracia ser um partido de direita ou esquerda a ganhar. Sejamos maduros: democracia é multiplicidade e nem sempre está de acordo com o que pensamos, faz parte.
Faz parte.
Perturba-me sim que ganhe um partido que se cumprimenta com a saudação nazi e presta reverência saudosista a um ditador criminoso.
Quem não foi ferido, não tem como sentir a dor. Daí que talvez a empatia seja a nossa maior obrigação.
Somos filhos de 380 anos de inquisição e de 40 de ditadura fascista.

Mas também somos filhos de Abril, folhas de cravo. Pulsamos como sangue vivo.

Onde derrubamos um ditador derrubaremos os que mais vierem por esta via.

 

Não é quem mais grita que mais tem razão. Essa é a via do bullying, não da consciência.
Olho por olho, dente por dente acabaremos todos cegos e desdentados.
Só não nos podemos permitir perder o fio da humanidade, dignidade e respeito.
Venha quem vier.
Haja o que houver.
Somos campos de cravos, florescemos a cada Desfolhada.

Para citar este artigo:

GARCIA, Íris. Chá de Cravos. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/cha-de-cravos/, número 50, 2024

Não é quem mais grita que mais tem razão. Essa é a via do bullying, não da consciência.
Olho por olho, dente por dente acabaremos todos cegos e desdentados.
Só não nos podemos permitir perder o fio da humanidade, dignidade e respeito.
Íris Garcia

Íris Garcia

Colunista e Autora regular da Revista

Sou a Íris. Sou Mãe, Terapeuta e Educadora Psico-Somática, Formadora de Fertilidade Consciente, Yoga Terapeuta, Doula, Mulher Medicina, Herbalista, Artista de Dança, Autora, Investigadora e ecologista. As minhas linguagens primeiras são a Natureza, a escrita e o movimento. Caminho, danço e escrevo desde que me recordo. O que me move é a vontade de cultivar equilíbrio sistémico a partir do respeito pela Natureza intrínseca de cada pessoa e sua experiência íntima e única,  em inter-conexão com as suas relações humanas e naturais, desde o lugar do corpo em proximidade orgânica com a Terra Viva.

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