Onde mora o coração, histórias e paisagens

Coluna de Ana Sevinate

2 MIN DE LEITURA | Revista 50

As Senhoras com Capuzes de Cor Púrpura

 

Era preciso agradecer às flores

Terem guardado em si,

Límpida e pura,

Aquela promessa antiga

Duma manhã futura.”

Sophia de Mello Breyner Andreson

 

As “campainhas” guardam segredos em cachos de cor púrpura. Sussurram umas às outras linhas de memórias e matizes de cura que a geração anterior foi pintando a óleo.

Mas se nos formos aproximando devagarinho e com gentileza, podemos ouvir os segredos que passam delicadamente de mão em mão. Com luvas de raposa.

Estendem-se em altura, em direção à eternidade do céu e à profundidade do solo, como uma árvore genealógica viva, vibrante e solene. Capuzes de feiticeiras. Toucas de sacerdotisas.

E em cada círculo que se cria, uma idade. Em cada varanda que se expande, uma transmissão. Quando fechadas puderam escutá-la. E guardá-la na pele tecida a papel de seda. E na sombra do carvalho e na humidade do bosque, abrem-se devagarinho. Quando abertas souberam cantá-la. Erguem-se as suas vozes. São senhoras de si agora. São senhoras do coração agora.

E em cada uma, a promessa do mel e o sigilo da Terra. E em cada uma, o pontilhado do Universo e o legado do mistério.

E vão subindo, as mais meninas. Porque os mistérios já vêm de longe, enaltecidos, fortalecidos. Antes de poderem ser ouvidas. E assim vão caindo, as mais senhoras. Sábias na sua queda. Antes de levarem consigo, de novo e por fim, os segredos e a alma do mundo.

 

E se nos formos aproximando devagarinho e com reverência, deixamos que se revelem. E entendemos então que assim também somos nós. Na pele da alma e no coração dos gestos, ecoamos aquilo que a nossa linhagem desenhou. Dores, nódoas negras e roxas? Também. Mas não esqueçamos, nunca e jamais, os remédios e os sonhos que edificam e nutrem possibilidades. Púrpura.

 

E se formos levando connosco o que nos toca, o que nos amachuca e o que nos transmuta para este encontro, os remédios revelam-se. E os sonhos libertam-se.

E se formos levando connosco os mistérios que nos vestem, a nós meninas e às senhoras antes de nós, abrimo-nos à voz e à alquimia do tempo. Temos capuzes pois. Temos toucas. Com cetins e remendos. Com fitas bordadas e costuras emendadas. Assim somos nós.

E se formos levando connosco as meninas pela mão e sussurrando flores e ventos, somos senhoras do tempo e mestras da voz. Temos estrelas pois. As do Universo e as que convidam as abelhas. Com brilhos e cicatrizes. Com dons e unguentos. Assim somos nós.

Devagarinho. Em silêncio. Escutemos. Tlim-tlim. As flores mães e as flores avós. Que dignificam a Terra. Que somos também nós.

Devagarinho. Em ovação. Falemos. Tlim-tlim. Por elas e na nossa própria voz. Que transforma o mundo.

E quando dermos por isso, e quando olharmos devagarinho para cima, podemos ver as meninas que nos ouvem com atenção. Tlim-tlim.

Que somos também nós.

(em www.historiasderaiz.pt)

Para citar este artigo:

SEVINATE, Ana. As Senhoras Com Capuzes de Cor Purpura. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-50/as-senhoras-com-capuzes-de-cor-purpura/, número 50, 2024

E se formos levando connosco os mistérios que nos vestem, a nós meninas e às senhoras antes de nós, abrimo-nos à voz e à alquimia do tempo. Temos capuzes pois. Temos toucas. Com cetins e remendos. Com fitas bordadas e costuras emendadas. Assim somos nós.

Ana Sevinate

Ana Sevinate

Psicóloga clínica e psicoterapeuta

Pós-graduada em psicossíntese e em cuidados paliativos. Membro do grupo de trabalho Ecopsicologia Portugal e co-fundadora do projeto Histórias de Raiz. Formadora no curso de doulas de fim da vida. 

Autora do livro Ser Terra: o abraço da Psicologia à natureza, publicado pela Chiado. Tecida por histórias, danças nas pontas dos pés, cores, papoilas aos molhos e folhas de tília.

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